A luz e o romantismo alemão

A sombra é, na visão do romantismo alemão, o verdadeiro lugar da luz. Terminamos com este artigo a série orientada pelo professor universitário e director artístico do Museu Colecção Berardo, Pedro Lapa

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A Luz constitui um dos conceitos nucleares do movimento cultural conhecido como o Romantismo alemão, escola de pensamento e de sensibilidade que se desenvolveu, na Alemanha, entre os finais do século XVIII e as primeiras décadas do XIX. A razão é simples: um dos traços fundamentais deste movimento encontra-se no desenvolvimento do que é usual designar como “filosofia da natureza” (Naturphilosophie) na qual a Luz constitui uma das suas categorias privilegiadas.

Se as raízes da filosofia da natureza remontam às origens clássicas do pensamento filosófico, pode-se, no entanto, sustentar que a ideia de Natureza constituiu um dos pontos fundamentais da sensibilidade romântica. Tal visão entrará em crise com o ressurgimento da física experimental, cujas bases essenciais remontam ao modelo científico gizado por Galileu, Kepler e Newton. Mas importa observar que as descobertas feitas, no século XIX, tanto no âmbito do electromagnetismo e da termodinâmica, como nas teorias da evolução, de Lamarck a Darwin, são o fruto, sem dúvida indirecto, de um interesse crescente por aquilo que era designado como Natureza pelos românticos.

Contrariamente a um preconceito comum, a visão romântica da natureza não implica uma subversão completa dos valores que o Iluminismo ou a Aufklärung consagraram. Fazendo nossas as palavras de Susan Neiman (Moral Clarity: a Guide for Grown-Up Idealists. 2009), o século das Luzes encontra-se marcado por quatro valores fundamentais, a saber, a felicidade, a razão, a reverência e a esperança. O Romantismo surge, numa primeira análise, como o desmentido destes quatro princípios, insistindo, por exemplo, nas dimensões trágicas da natureza humana, no culto do sentimento e das emoções, na ênfase dada ao mistério e à revelação, no grito de desespero que ecoa, a título de exemplo, nos últimos versos do poema ultra-romântico de Poe, The Raven (O Corvo): “And my soul from out that shadow that lies floating on the floor / Shall be lifted — nevermore!” (“E a minha alma para lá desta sombra que faz flutuando no chão / Será levantada — nunca mais!”).

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Caspar David Friedrich: Mondaufgang am Meer (1822)

Mas tal contraste esquece o interesse romântico pelas “iniciações à vida feliz” (cf. Fichte), pela intuição de uma razão orgânica presente na natureza, pela identificação estético-religiosa entre a beleza e o sublime, pela certeza no desvelamento de todos os véus que cobrem a luz da verdade (Cf. Novalis, Os discípulos em Saís). Importa, assim, mitigar o contraste e descobrir que a reverência moderna pela Luz, bem consubstanciada na teoria física de Newton, não dá lugar ao culto das trevas, mas antes à redescoberta da sombra, da sombra luminosa, verdadeiro lugar onde o autêntico espectro cromático tem lugar. O Romantismo deve ser antes visto, nas sábias palavras de Isaiah Berlin, como a expressão de um “novo espírito, inquieto, buscando violentamente eclodir para lá de formas antigas e envelhecidas, com uma preocupação nervosa com as perpétuas mudanças dos estados internos da consciência, com um desejo em direcção ao infinito e ao indefinível, pelo perpétuo movimento e mudança, através de um esforço em retornar às fontes esquecidas da vida, enquanto esforço apaixonado de auto-afirmação individual e colectiva, em suma, numa busca pelos meios de expressão que traduzam a ânsia insaciável por metas inatingíveis” (The Crooked Timber of Humanity, 1990).

A melhor ilustração da tensão entre a filosofia da natureza romântica e a física experimental encontra-se precisamente na análise da natureza da Luz. Em 1810, Goethe publica a sua teoria das cores (Zur Farbenlehre). Em termos sintéticos, a principal diferença entre a teoria da luz, expressa por Newton nos seus tratados de óptica, e a visão das cores de Goethe encontra-se no facto de que, para o físico inglês, a luz é heterogénea e composta de várias cores, enquanto, para Goethe, a luz é uma realidade homogénea. Assim, para Newton, as cores são a expressão analítica da luz; pelo contrário, para Goethe, as cores são o resultado da interacção da luz e das trevas. Na visão do poeta alemão, existem duas cores fundamentais, o amarelo, no qual a luz é mais saliente, e o azul, em que a escuridão predomina no seio da luz. Mas, para lá destas diferenças de interpretação da natureza da Luz, o facto mais saliente é a metodologia radicalmente distinta utilizada pelos dois pensadores. Claramente, Newton analisa a luz na perspectiva da terceira pessoa, isto é, a sua investigação é dominada pelo observação neutra e objectiva de um fenómeno físico. Pelo contrário, Goethe quer construir uma teoria da luz que saiba cruzar a perspectiva da terceira e da primeira pessoa, isto é, que tenha em atenção a forma como os seres humanos perspectivam a luz. Para o pensador alemão, as sensações de cores não são dissociáveis da nossa própria percepção, sendo errado restringir as qualidades, ditas secundárias, segunda a conhecida observação de Locke, a processos estritamente objectivos. Para Goethe, a sombra é parte da forma como a Luz é recebida pelo olhar humano.

A concepção de Goethe sobre a luz não é estranha ao modo como Schelling constrói a sua filosofia da natureza. Segundo o filósofo romântico, a natureza é pensada não tanto como o conjunto de objectos externos à mente humana, mas antes como o todo orgânico no qual se oferece a identidade entre o sujeito e objecto. Como nos dirá, “a natureza é o espírito visível e este último, o espírito, a natureza invisível”. O objectivo central da filosofia da natureza é mostrar como a criatividade orgânica, não-mecânica, se reencontra com o próprio sujeito que a analisa. A Natureza é, assim, o passado imemorial da ipseidade, da singularidade do sujeito, sendo essa a razão pela qual Novalis sustenta que o desvelamento do véu da natureza nos faz descortinar a presença de si no mundo. Esta identidade entre sujeito e natureza encontra como análogo físico a correspondência entre a luz e a gravidade. Como dirá Schelling, “deve haver um encadeamento escondido entre a acção da luz (que tudo diferencia) e a da gravidade (que tudo dissolve)” (Entwurf. 1799).

Pode-se, assim, concluir dizendo que existem, para os românticos alemães, factos fundamentais da natureza, entre os quais sobressai a luz do sujeito que se descobre na sombra e não tanto na extrema, mas abstracta, luminosidade. A sombra é, na visão do romantismo alemão, o verdadeiro lugar da luz.

 

Carlos João Correia é professor associado da Universidade de Lisboa. Lecciona na Faculdade de Letras da mesma universidade desde 1980. É director da revista philosophy@lisbon editada pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e presidente da Associação Filosófica e Cultural “O que é?”

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