“A literatura deve ter um compromisso com a beleza”

Má Luz é o primeiro romance de Carlos Castán, conhecido como autor de contos. A busca do que somos e numa viagem pela literatura.

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Nuno Ferreira Santos

Carlos Castán além de escritor é professor de filosofia. Mas não se dedicou à Filosofia a nível académico, não fez doutoramentos, não escreveu nenhum livro de filosofia. Sempre lhe interessou mais o literário do que o filosófico. Agora, aos 55 anos, num sofá do Instituto Cervantes, em Lisboa, diz que foi por isso que estudou filosofia.

Teria estudado literatura mas não queria que ninguém a estragasse com exames, com comentários de textos, por isso não o fez. “Tinha amigos que estudavam filologia hispânica e estavam a dar coisas como o formalismo russo e dizia-lhes: não, não, não, a literatura para mim só pelo prazer”, conta o escritor espanhol. E isso vê-se muito neste livro, Má Luz (ed. Teorema) - o seu primeiro romance, porque a literatura está presente do princípio ao fim. Em Má Luz, depois de um crime, da morte do seu amigo Jacobo, o protagonista começa a investigar a sua própria vida. Trata-se de um romance introspectivo, sobre o medo, mas também é romance que trata do amor, do desejo e do luto. O autor quis abordar o monólogo interior e falar sobre a condição humana contando histórias. Essa voz interior é a verdadeira protagonista deste livro de que não é fácil falar porque o que verdadeiramente tem peso neste romance acaba por ser a própria linguagem. 

Depois de um percurso no conto, este é o seu primeiro romance. Porque quis fazê-lo?
Sempre escrevi contos, era um formato que parecia adequado para as histórias que me ocorriam. Não sou um escritor de grandes histórias, muito complexas, com muitos personagens. Tal como se vê em Má Luz. Como leitor também não me interessam histórias muito complicadas e  rebuscadas. Escrevia histórias simples, dando mais importância a um personagem, a um monólogo interior, a um estado de ânimo, etc. O motivo que me levou a escrever um romance, foi precisamente para ganhar uma maior liberdade, para não ter de seguir essas regras da escrita de um conto. O romance permite-me descrições, andar para a frente e voltar atrás, não ter essa pressão de que no conto não tem que faltar ou que sobrar nada. Embora às vezes os meus contos não obedecessem a isso. Não gosto de literatura em que se vê muito a arquitectura. Sinto-me melhor com estruturas mais desconstruídas como acredito que é a vida e o pensamento.

Estas personagens já tinham aparecido em algum conto?
Não. Mas é verdade que os meus contos, como dizia, quase todos estão escritos na primeira pessoa, não todos, mas uns 70 ou 80%. E no plano da acção, mais do que o que acontece, o importante é como a acção é vivida. Como as acções afectam a interioridade das personagens. Sucedem mais coisas dentro da cabeça da personagem, que tem a voz narradora, do que no próprio mundo. E isto é algo que sucede também no romance Má Luz. Claro que acontecem coisas mas não é o que mais me interessa, o que me interessa é como isso afecta e é vivido e interiorizado por uma personagem concreta.

Ao longo do livro faz referência à vida e tragédia do poeta Paul Celan. E em epígrafe colocou ‘Estávamos mortos e podíamos respirar’. Porquê?
Estes versos funcionam como leitmotive, são como um lema da história que estou a contar. Mas há outros temas  importantes no livro, um deles é a presença do que se foi, de coisas que partem mas que apesar de tudo permanecerem.

Está a falar da omnipresença do que perdemos.
Sim, por exemplo, de uma história de amor que termina mas não termina, quando continua a haver um sentimento que pode causar dor. Ou a mãe, personagem neste livro que perdeu a memória mas apesar disso continua a ser ela. Ou a criança a abrir passagem entre as pombas [que ele recorda numa foto], que desapareceu, que já não existe mais, mas que se tem ainda dentro. Como nada acaba por se ir embora definitivamente, pareceu-me que era muito bem escolhido ter esses versos de Celan, estávamos mortos e podíamos respirar. Não no sentido que tem no texto original mas  descontextualizado. Para mim era uma frase que simbolizava bem o que queria dizer. Termina-se uma guerra mas continua a haver guerra, em Espanha isto entende-se muito bem. Este é um romance também de pegadas, de vestígios, de pistas. O personagem tenta, a partir de objectos, recompor a sua identidade. Quando morre o amigo...

… encontra-se a si próprio através da busca do outro.
Quando não sabe o que aconteceu ao amigo Jacobo quer saber e procura na casa dele, abre gavetões, pesquisa no computador. Tenta deduzir o que se passou a partir de pistas. O mesmo que faz um polícia quando há um crime. Mas depois a personagem regressa à sua própria casa, onde não houve nenhum assassinato, onde não se passou absolutamente nada, e continua a abrir gavetas. Já não está em busca do outro. A eminência da morte disparou isso, essa necessidade de se saber quem se é. Má Luz tem muito de processo de auto-indagação, um pouco como Proust embora não tenha nada a ver com Proust. Mas é um processo de auto-indagação e o que faz disparar isso, o que o motiva, é a morte do amigo.

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Carlos Castán além de escritor é professor de Filosofia. Mas não se dedicou à Filosofia a nível académico, não fez doutoramentos. Sempre lhe interessou mais o literário do que o filosófico Nuno Ferreira Santos

É um romance quase sem diálogos.
Quase sem diálogos e também quase sem cenas. Funciona mais como um monólogo interior. Há até um capítulo que é quase um passeio em que não acontece nada a não ser o que ele vai pensando. Diálogos há muito poucos porque o personagem também não tem com quem falar.

Obras e poetas atravessam toda a narrativa. Há até um episódio sobre o poeta Leopoldo María Panero (1948-2014). A forma como isso nos é contado, é como se o tivesse vivido.
Vivi-o sim. Não tive uma relação especial com Leopoldo mas considero-o muito importante na minha biografia, nomeadamente pela época em que apareceu na minha vida. Quando eu era muito jovem, em Madrid, a sua poesia marcou-me, fez-me descobrir a beleza literária. A poesia de Leopoldo era para mim diferente de tudo, não se parecia com nada. Parecia ser belíssima mas golpeava fundo, era bela e terrível ao mesmo tempo. Fazia descobrir abismos. Ele era uma pessoa que nos fascinava, aos meus amigos e a mim. Era como um príncipe das trevas. Admirávamo-lo mas ao mesmo tempo era patético vê-lo porque estava sempre bêbado, caía ao chão pelos bares, era agressivo, tinha problemas. Mas como o tínhamos lido, sabíamos da sua sensibilidade e quem realmente ele era. Aproximámo-nos dele mas era muito difícil. Era uma pessoa imprevisível, enlouquecida, já tinha começado a sua deriva por vários manicómios quando o conhecemos. Era o início da movida madrilena, nos anos 80, passávamos o dia todo na rua. Mas ele não tinha nada a ver com a movida, não era a superficialidade, era precisamente o contrário. Estou a falar de pessoas muito jovens que estão a descobrir o mundo e que ficam fascinadas por uma pessoa, por um ser que esteticamente era irresistível. Acredito que de alguma forma nos condicionou a ver a beleza que há na perdição, na loucura, um pouco insensatamente. Como o livro rastreia um pouco a identidade, o personagem tem umas coisas a ver comigo outras não. Não é autobiográfico certamente…

Espero que não...
[risos] Não é, mas claro que estão lá coisas que sucederam, que se viveu, parte da nossa história pessoal mas também da história colectiva e também das leituras. O que nos chega num momento determinado, que nos manda numa direcção e não numa outra. As influências, já é difícil seguir as influências literárias, sabes que não estás sozinho quando escreves mas não sabes bem com quem estás, mas quando se trata das influências na vida é ainda mais difícil. Francamente acredito que no momento em que entro em contacto com Panero é a fascinação por ele, mas também por todo um universo, os seus irmãos, a poesia do seu pai, a saga familiar que depois te leva a outros autores malditos.

Também é forte a presença da escritora Marguerite Duras (1914-1996), do seu marido Robert Antelme e do amante Dionys Mascolo.
Gosto muito de Marguerite Duras, ela interessou-me sempre muito. De todos os seus livros A Dor é o que mais me interessou. Conto um episódio que é contado muito melhor por ela no próprio livro. Interessava-me para este triângulo amoroso que se forma no meu romance Má Luz, entre duas pessoas que estão vivas e um morto. Faço-o como uma espécie de homenagem.

Refere também E. M. Cioran (1911-1995). Fala de leitores adolescentes que se suicidavam todos os anos enquanto ele fazia footing em Paris?
Está relacionado com o que lhe dizia antes sobre o período formativo e o quão importante ele é na nossa vida. Na realidade não houve estudantes que se suicidassem, mas E. M. Cioran é um autor muito profundo e está pouco valorizado. Era um autor que estava na moda nos meus tempos de adolescente, os seus livros com títulos como A Tentação de Existir ou O Incoveniente de Ter Nascido são muito atractivos para um adolescente e a sua obra influenciava muitos jovens de maneira a provocar-lhes desespero. Quem lidou directamente com ele conta que era um vitalista oculto, gostava de viver mas quando aparecia um fotógrafo, levava as mãos à cabeça sofredor. Era uma representação. Muitas vezes aquilo que descobrimos ser uma verdade última é uma impostura de um outro. No fim de contas não sabes se o que te influencia verdadeiramente é sólido ou se é uma boutade de um outro convertida para ti numa religião.

É um pouco difícil falar deste livro porque muito do importante nele é a maneira como está escrito. Alguém dizia que é para ler e sublinhar. Como foi esse trabalho com a linguagem?
Para mim o trabalho com a linguagem é muito importante, não lhe saberia dizer porquê. O meu primeiro livro de contos Frío de vivir deu-me muito trabalho. Recordo-me que contava as sílabas. Deixei de fazê-lo logo ali mas dois livros depois, num encontro de escritores em que tinha de ler um texto em público, disseram-me que o tinha escrito em decassílabos. Dou importância ao ritmo como se vê nos capítulos neste livro mais descritos como se fossem um poema em prosa. Dizem que há escritores “do como” e outros “do quê”. Eu seria mais um escritor do como. Muda tudo, dependendo de como se conta. A mesma história pode ter interesse literário, se se conta de uma maneira, ou ser uma telenovela se se conta de outra. Tenho como certo que a literatura tem de ter um compromisso com a beleza. E embora essa definição de beleza mude é também a precisão, o procurar a palavra exacta. Mas estou completamente de acordo de que é difícil falar deste livro porque nele tem mais peso a linguagem do que a acção. Nos meus relatos curtos já sucedia o mesmo, são poucos os que podes explicar a um amigo dizendo o que lá se passa.

As mulheres deste livro surgem idealizadas. Nadia não é o que as personagens masculinas imaginam e a mãe, a mulher sem memória, talvez seja...
... a mais de carne e osso. Não sei se concordo. Há um pouco a ideia de que toda a mulher, para um heterossexual, é uma ficção e que o mesmo acontece numa relação homossexual. Não nos enamoramos de pessoas, nunca. As pessoas descobrimo-las depois. Quando nos apaixonamos por alguém conhecemos muito pouco dessa pessoa, além do aspecto físico, e o que o completa é a imaginação. Por isso há esses choques tremendos com a realidade porque enamoramo-nos de uma personagem de ficção, que não existe. E se perdura uma relação é um processo de negociação brutal, de reajuste. No final pode haver um amor verdadeiro entre duas pessoas mas é sempre posterior. Neste romance não há tempo para isso acontecer. Estamos sempre na fase de idealização. Mas não creio que seja uma questão de género, em que as mulheres sejam vistas muito superficialmente e só do ponto de vista do fascínio. Pois os outros personagens homens do romance também são superficiais. Do que estou a falar é do objecto de desejo. Se nos perguntassem se existe uma pessoa no mundo que nos conhece de verdade, todos responderíamos que não. E o inverso também é verdade.

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