“A língua portuguesa é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram”

As primeiras caravelas que chegaram à Guiné-Bissau, em 1446, estavam longe de imaginar que no bojo transportavam também a língua em que foi declarada a independência do país, quinhentos e vinte e sete anos depois. Naquele dia 24 de Setembro de 1973, o idioma da opressão colonial transformou-se em língua de libertação nacional. Amílcar Cabral não assistiu à cerimónia, tinha sido assassinado no primeiro mês desse ano, mas reconheceu “que o português de múltiplas tiranias era o mesmo português das várias resistências”, como escreveu Manuel Alegre.

Amílcar Cabral definiu a luta de libertação como um acto de cultura e no contexto da libertação nacional, Cabral não foi só um líder revolucionário, foi também, como lhe chamou Paulo Freire, um “pedagogo da revolução”. Cabral não só delineou como começou a implementação das bases de um novo paradigma educacional que, pelo seu carácter libertador, humanista e progressista, contrariava os pressupostos do ensino colonial.

Para Cabral, a educação era uma garantia do sucesso da própria luta de libertação nacional. Além de promover a formação militar, académica e cultural de quadros, no estrangeiro e no país, ministrou, ele próprio, vários seminários e empreendeu a educação das crianças. Em Dezembro de 1964, criou uma escola-piloto no bairro de Ratoma, nos subúrbios de Conakry, que funcionava em regime de internato, depois seguiram-se mais escolas nas regiões libertadas.

Amílcar Cabral partiu do conceito que a libertação nacional não se limita à conquista da independência, ou ao içar da bandeira nacional, mas implica a plena emancipação do homem e a “libertação das forças produtivas humanas e materiais da nossa terra, no sentido delas se poderem desenvolver plenamente de acordo com as condições históricas que a gente está vivendo hoje em dia”. Mais, apresentou o contributo decisivo da “Arma da Teoria”, ou seja, o conhecimento científico, para o sucesso das revoluções de libertação nacional.

A ligação teoria-prática em Amílcar Cabral nota-se na própria actuação como líder, ao ligar o discurso à prática, incitando cada combatente a “pensar para agir e agir para melhor pensar”. Além disso, a relevância do conhecimento científico da realidade política, económica, social e cultural, como pressuposto da sua transformação, foi salientada por Cabral, ao observar que “a nossa própria realidade não pode ser transformada a não ser pelo seu conhecimento concreto”.

Ao longo dos textos, Cabral não só sublinha a ideia de que a luta para a independência e o progresso só pode ter sucesso apostando na educação e na aprendizagem como aplica uma prática consequente ao procurar criar condições para que a cultura e o saber fossem acessíveis a todos, nomeadamente através do cultivo da leitura: “Criar, a pouco e pouco, bibliotecas simples nas zonas e regiões libertadas, emprestar aos outros os livros de que dispomos, ajudar os outros a aprender a ler um livro, o jornal e a compreender aquilo que se lê (…) Levar os que lêem a discutir e a dar opinião sobre o que leram”.

Se a pedagogia da libertação de Cabral tinha por base a defesa da identidade e da cultura nacional, esta posição não significava desprezar a cultura dos outros, implicando, antes, o seu aproveitamento “em tudo quanto é bom para nós, tudo quanto possa ser adaptado às nossas condições de vida”, pois que “a nossa cultura deve desenvolver-se numa base de ciência, deve ser científica”.

Assim, Cabral combatia tanto a aceitação acrítica como a negação absoluta de tudo quanto é estrangeiro, insistindo que “devemos saber, diante das coisas do estrangeiro aceitar aquilo que é aceitável e recusar o que não presta”, o que exige a capacidade “assimilação crítica”.

A visão de Amílcar Cabral sobre a cultura tende, pois, para a “multiculturalidade” que, no sentido de Paulo Freire, “não se constitui na justaposição de culturas”, nem muito menos na sobreposição de uma cultura sobre as outras, mas na “liberdade conquistada” de cada uma delas se mover no respeito pela outra, correndo, livremente, “o risco de ser diferente, sem medo de se se diferente”.

Defensor consequente da cultura e da identidade dos povos guineense e cabo-verdiano, Cabral posicionava-se, no entanto, contra qualquer tipo de oportunismo, referindo-se, nomeadamente, aos “camaradas que pensam que, para ensinar na nossa terra, é fundamental ensinar em crioulo já”, ou então “em fula, em mandinga, em balanta”.

Apologista do ensino em crioulo, mas só depois de o mesmo ser bem estudado, Cabral defende que, antes disso, “a nossa língua para escrever é o português”. Apelando ao sentido de realismo, e sem proibir que ninguém escreva em crioulo, sustenta que “o português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram” e que, “se queremos levar para a frente o nosso povo, durante muito tempo ainda, para escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o português, até um dia em que, tendo estudado profundamente o crioulo, encontrando todas as regras de fonética boas para o crioulo, possamos passar a escrever o crioulo”.

Num seminário aos quadros do partido, onde explicou a opção pela língua portuguesa, Cabral refere que a língua não é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo. “Mas o mundo avançou muito, nós não avançamos muito, tanto como o mundo, a nossa língua ficou ao nível daquele mundo a que chegamos que nós vivemos, enquanto o tuga, embora colonialista, vivendo na Europa, a sua língua avançou bastante mais do que a nossa, podendo exprimir verdades concretas, relativas, por exemplo, à ciência. Por exemplo, nós dizemos assim: a Lua é um satélite natural da Terra. Satélite natural, digam isso em Balanta, digam em Mancanha. É preciso falar muito para o dizer, é possível dizê-lo, mas é preciso falar muito, até compreender que um satélite é uma coisa que gira à volta de outra. Enquanto que em Português, basta uma palavra. Falando assim, qualquer povo no mundo entende. E a Matemática, nós queremos aprender Matemática, não é assim? Por exemplo, raiz quadrada de 36. Como é que se diz raiz quadrada em Balanta? É preciso dizer a verdade para entendermos bem. Eu digo, por exemplo: a intensidade de uma força é igual à massa vezes aceleração da gravidade. Como é que vamos dizer isso? Como é que se diz aceleração da gravidade em nossa língua? Em Crioulo não há, temos que dizer em Português. Mas para a nossa terra avançar, todo o filho da nossa terra, daqui a alguns anos tem que saber o que é aceleração da gravidade. Camaradas, amanhã, para avançarmos a sério, não só os dirigentes, todas as crianças de nove anos de idade têm que saber o que é a aceleração da gravidade. Na Alemanha, por exemplo, todas as crianças sabem isso”.

“Há muita coisa que não podemos dizer na nossa língua, mas há pessoas que querem que ponhamos de lado a Língua Portuguesa, porque nós somos africanos e não queremos a língua de estrangeiros. Esses querem é avançar a sua cabeça, não é o seu povo que querem fazer avançar. Nós, Partido, se queremos levar para frente o nosso povo, durante muito tempo ainda, para escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o Português. E isso é uma honra”.

Amílcar Cabral, embora conhecedor e respeitador das características sócio-culturais do contexto, fez a opção política pelo português como língua oficial. Segundo Luiza Cortesão, Professora Emérita da Universidade do Porto e Presidente da Direcção do Instituto Paulo Freire de Portugal, Cabral tinha consciência do estatuto, histórico e internacionalmente reconhecido, da língua portuguesa, que iria favorecer as relações internacionais com o novo Estado-Nação. Recorrendo ao lema “Unidade e Luta” num país, onde existiam diferentes povos falando várias línguas, a opção por uma delas poderia, também, constituir uma ameaça à “unidade” necessária ao Estado-Nação por cuja construção lutava. A escolha do português como língua oficial terá sido uma opção táctica de uma estratégia para alcançar o objectivo maior, que era essa construção do Estado-Nação.

Aliás, a opção pela língua de Camões foi tomada pelos movimentos independentistas ainda no decurso da luta de libertação e resultou do reconhecimento de que a sua utilização concorreria eficazmente para consolidar as fronteiras políticas e culturais dos futuros Estados, contribuindo também para fortalecer a independência e a unidade nacional, como refere José Manuel Matias, mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Neste contexto de contingência histórica, a língua portuguesa em África (principalmente em Angola e Moçambique, onde a geografia não forjou nenhum crioulo) não é um instrumento neutro, um duvidoso meio de comunicação entre os africanos, mas a expressão da sua afirmação nacional. Em suma é um factor de apaziguamento político e social.

No entanto, esta opção de Cabral provocou uma divergência, forte, com o ‘aliado’ Paulo Freire. Como escreve o filósofo brasileiro nas suas Cartas à Guiné-Bissau: “A imposição da língua do colonizador ao colonizado é uma condição fundamental para a dominação colonial que se estende na dominação neocolonial. Não é por acaso que os colonizadores falam da sua língua como língua e da língua dos colonizados como dialecto; da superioridade e riqueza da primeira a que contrapõe a ‘pobreza’ e a ‘inferioridade’ da segunda”.

Paulo Freire considerou que Amílcar Cabral foi ingénuo, teve um deslize, sucumbiu ao tacticismo ou simplesmente errou quando afirmou que a língua portuguesa é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram. No entanto, para o investigador cabo-verdiano Corsino Tolentino, esta foi uma das teses mais ousadas e felizes de Amílcar Cabral. “A língua do colonizador – seja ela árabe, es-panhol, francês, inglês ou português – pode ser um instrumento indispensável e eficaz na luta de libertação e na construção do Estado nacional”.

“O que me parece extraordinário é Amílcar Cabral ter tido a lucidez e a coragem de defender a língua portuguesa, como o fez naquele tempo, ao mesmo tempo que promovia o Crioulo da Guiné e Cabo Verde como língua franca e de identidade nacional”.

“Além disso, sentindo-se soldado das Nações Unidas desde a primeira hora, protagonista de uma luta que sendo política, tinha natural vocação para preferir a arma da teoria ao poder das armas, Amílcar Cabral promoveu o Crioulo da Guiné e de Cabo Verde, valorizou as línguas africanas, defendeu a língua portuguesa e cultivou quantas línguas de origem europeia pôde”, conclui Corsino Tolentino.

Certo é que em cada um dos PALOP, a afirmação das respectivas identidades culturais, como a própria proclamação das respectivas independências, foi feita em português. Língua de viagem e mestiçagem, como diz o poeta Manuel Rui. Ou, como refere Manuel Alegre, “a língua é a mesma. Mas não é a mesma. É una. Mas é diversa. Tanto mais ela quanto mais diferente. Tanto mais pura quanto mais impura. Tanto mais rica quanto mais mestiça”.

Texto originalmente publicado no jornal Expresso das Ilhas (Cabo Verde) a 25 Junho 2014

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