A libertação do corredor de longo curso

Cinco anos depois de Do Amor e Dos Dias, o último de inéditos, vinte anos após Uma Noite de Fados, Camané oferece-nos um disco negro mas aberto ao mundo. Agora, diz, é um intérprete. Nunca um disco seu foi tão amplo.

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Camané já foi James Dean; agora é Clint Eastwood ARLINDO CAMACHO

Talvez não seja a revelação mais fascinante a vir a lume nos meandros da música popular, mas fiquem a saber que é difícil manter Camané quieto num sofá.

Mais propriamente no de sua casa quando está a mostrar um disco acabado de fazer e que ainda não chegou às lojas: “Não o mostrei a ninguém”, diz a dada altura, “nem à minha mãe. Mas já estou farto dele”. Ele é Infinito Presente – o primeiro álbum de fados inéditos que Camané lança em cinco anos.

Pode até estar farto – mas isso não o impede de saltar constantemente do mencionado sofá para pôr um tema um bocado para trás de modo a que notemos, por exemplo, uma acentuação de uma palavra; ou avançar para determinada parte só para mostrar como resultou uma ideia de José Mário Branco. Quando chegamos a Quatro facas, o nono tema, faz um gesto rápido, como um pai que impede a criança de atravessar a passadeira quando está vermelho para os peões: “Olha agora, olha agora”, diz. Ouve-se um ataque súbito à guitarra, que produz um som de lâmina a rasgar: “É a faca”, explica, revelando ao espectador ingénuo como os mestres construíram a emoção que o espectador sente.

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A ideia era escutarmos Infinito Presente e conversarmos sobre este longo período de espera desde Do Amor e Dos Dias e fazer um balanço dos vinte anos não de carreira mas de discos – Uma Noite de Fados, a estreia a sério, saiu em 1995.

Só que o cérebro de Camané, perante um disco de fado, concentra-se apenas numa só coisa: a música. De como que falar com ele é como ser o melhor amigo do tipo que inventou a lâmpada eléctrica e tentar conversar sobre boxe – apenas para ouvir como resposta “Repara como o filamento acende com a diferença de tensão”. Ou ser a mulher de Einstein, cheia de vontade de discutir as notícias, para receber de volta um “Vezes a massa ao quadrado, percebes?”.

Camané já não quer ouvir o disco – mas cada vez que o ouve nota mais e mais detalhes, porque – e resumindo – a música, para ele, é mais importante que ele próprio. E ele é uma enciclopédia viva de fado, que explica que esta voltinha roubou-a a fulano de tal e aquele arranjo lembra aqueloutro de antanho.

De modo que se fartou de saltar do sofá na direcção da aparelhagem, o que não é muito boa ideia em quem deu “cabo dos rins” durante a gravação. “Isto dá muito trabalho”, diz, já depois de escutado o disco. “Rebenta comigo. Estive uma semana para recuperar”. Está mais calmo, agora que a música parou, o seu tom baixa, torna-se mais reflexivo – e de repente diz: “Quando faço isto sinto-me como aquelas crianças que fizeram asneira e têm medo de serem apanhadas”.

Aberto ao mundo
Tradução: quando Camané faz um disco tem medo que as pessoas ouçam e digam que é um enorme disparate. Não é – nunca foi e continua a não ser e o que faz com que os seus discos nunca baixem a fasquia está bem evidente à nossa frente: são os pulos do sofá, aquelas antenas que ouvem tudo, que notam cada mínima nota, os ouvidos que não desligam e uma coisa estranha, um brio que não lhe permite aceitar não alcançar aquilo que tinha na cabeça.

E se calhar foi por isso que demorou cinco anos a fazer o que diz ser um disco “ainda mais negro que os anteriores”. É uma das possíveis definições para Infinito Presente – e há faixas, como a espontosa e minimal Chega-se a este ponto, ou a arrasadora Triste Sorte, que encerra a edição especial do álbum (está ausente da edição normal) que certificam a afirmação de Camané. O disco, note-se, tem três edições: a normal, com 15 temas, a especial, com 17 e um DVD da feitura do álbum, e a digital com as 17 canções.

Por outro lado “é um disco menos introspectivo” que os primeiros e “já o anterior [Do Amor e Dos Dias] o era”. Esta talvez seja a marca mais notória de Infinito Presente – uma espécie de abertura ao mundo, um disco de quem, em vez de olhar para os sapatos, deprimido, olha pela janela, com empatia. Posto de outra forma: “Agora sou um intérprete”, resume.

“É muito fácil ficar fechado” num mundo, continua. “Agora, contar uma história, ter de usar a ironia, isso obriga-me a sair de mim, a ver as coisas de forma mais descritiva, de fora”. Há um tema em Infinito Presente, Ai Miriam, cuja protagonista “é uma espécie de Robin dos Bosques no feminino”. “Isto tem a ver com as crianças pobres e que vivem na rua”, explica Camané.

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A imagem que as pessoas têm dele é a de alguém que canta como ninguém as derrotas e fraquezas pessoais, não a de quem faz – passe o exagero – canções de intervenção. “É sobre os tempos que vivemos – vemos crianças que já não têm futuro. Há um lado social ao qual não sou alheio. O A Correr [tema de Infinito Presente] também tem a ver com a forma como as pessoas vivem, no caso fala de ganância”.

Ele conclui: “Há poemas que eu, há uns anos, não cantaria, não era capaz”. De repente, reouvindo o disco, apercebemo-nos que Camané tem 49 anos. Quando surgiu parecia um menino que punha as entranhas em cada fado. Agora a sua voz está diferente – não propriamente mais grave, mas encorpada, com outra textura. Passaram vinte anos – não é mais o rapaz com talento, é um homem feito. E demorou imenso a chegar “a isto”.

“Isto” é “fazer da canção o que ela pede”, é o trabalho “ser sobre a canção, não sobre mim”. Ele explica: “Há muito tempo gravei um fado do Pessoa e estava a cantar como se aquela história fosse muito dramática mas não havia dramatismo algum. Tinha de ser mais descritivo”.

De certa forma, recorda, “isso já acontecia em canções como A minha rua [de Na Linha da Vida] ou Ela tinha uma amiga [de Como Sempre, Como Dantes]”, pequenas experiências fora do seu universo intimista, que o tornaram “melhor intérprete”.

Camané, como sabe quem já lidou com ele, é um homem paradoxal: tímido mas capaz de enfrentar uma multidão, espontâneo mas reservado. O tempo e o trabalho foram-no libertando: “Há determinados registos emocionais a que eu não chegava, porque era tímido demais para isso”, diz a dada altura, antes de fazer uma afirmação fundamental para entender este disco: “Foi um trajecto difícil, mas um intérprete tem de ser capaz de fazer tudo”.

Se isto vos facilitar a vida, pensem que Infinito Presente é o disco em que Camané se liberta de si e se torna, finalmente, um intérprete. É o culminar de um longo processo: “Tive de aprender a sair de mim e a ter a humildade de não pensar em mim enquanto canto”.

Mas, e apesar dos temas mais “sociais”, também é outra coisa, presente nos primeiros fados e, em particular, em Triste Sorte, que encerra a versão especial: é um disco sobre o tempo. “Quando começámos a fazer o disco encontrámos uma série de coincidências sobre o tempo, e depois chegámos à quadra final e o conceito estava ali”. Ele usa o plural porque cada disco seu é também um disco de José Mário Branco (eterno produtor e compositor de alguns temas) e Manuela de Freitas (casada com José Mário, letrista e recolectora de poemas para Camané).

A cada disco o processo é o mesmo: Camané aparece em casa de Zé Mário Branco e Manuela de Freitas, levando com ele não mais que um par de fados, uma vaga ideia e alguns poemas. Manuela de Freitas recolhe os restantes, Zé Mário Branco compõe alguns temas e todos juntos recolhem fados antigos, fados novos e vêem o que encaixa em quê e um conceito vai surgindo.

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O álbum mais inteiro
No caso o disco apareceu por acaso. Camané foi um dia à televisão e falou “de dois temas do [seu] bisavô [José Júlio Paiva]”, que há muitas décadas editara um single. “Nunca tinha ouvido as canções, falei delas e houve uma pessoa que me ouviu na TV e me as passou”. Na mesma altura havia recebido, do filho de Alain Oulman, um tema inédito do pai deste – e foi isto que Camané levou a José Mário Branco e Manuela de Freitas.

De certa maneira, e porque são vinte anos a trabalhar com eles, “a cumplicidade é muito maior”, pelo que “não é preciso muita coisa para se chegar a um fado”. Por outro lado, “cada vez é mais difícil”. A cada disco são usados mais uns quantos fados tradicionais e Camané, que não gosta muito de se repetir, começa a reflectir que “um dia não vai haver mais fados com que [se] identifique”.

Mas sabe que eles próprios (Camané + Zé Mário+ Manuela de Freitas) nunca vão “pelo caminho mais fácil”. E ouvindo o álbum com ele – experiência que devia ser obrigatória – percebe-se porque é que ele diz que “não é um disco simples, é um disco bastante complicado”.

Enquanto se ouve Chega-se a este ponto ele faz notar que o tema “é completamente fora ao nível dos arranjos, em contra-tempo constante”; quando chegamos à extraordinária Desastre (um prodígio de contenção, começa lenta e vão tornando cada vez mais pungente), Camané atira: “Isto é uma coisa muito cinematográfica. Há qualquer coisa similar com o Construção, do Chico Buarque”.

Alguns dos seus comentários são inesperados. Passaste por mim, por exemplo: a base é o fado Freira (um fado tradicional) e a interpretação foi inspirada no fadista Rodrigo. “Quando era miúdo o Rodrigo cantava o fado Freira muito bem. Ficou-me sempre na memória o Espera de toiros em Salvaterra”. Chegados a Quando o fado acontece Camané, que é uma enciclopédia, atira: “Este é um fado muito antigo [fado Pintadinho], que eu nunca tinha cantado e faz parte das minhas memórias. A Maria Teresa de Noronha cantava isto muito bem, fazia aqui um grande falsete que eu não consigo fazer”. A informação não pára. Em relação a Ao correr da pena ocorre-lhe que “o Carlos do Carmo usava este fado [fado Pena] para cantar o Trem Desmantelado. Resolvi usá-lo porque como o registo emocional é diferente parece outra canção”.

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Mas histórias sobre cada canção à parte, o que uma conversa tema a tema com Camané revela é quão espantoso e penoso é chegar a um disco assim: é preciso juntar o conhecimento e o instinto de Camané, com as dúvidas de Zé Mário e o laborioso trabalho de palavras de Manuela de Freitas, encontrar um conceito unificador e depois desconstruir cada tema, pensar que palavra importa em cada fado, o que cada instrumento pode fazer por ele. Não admira que Camané chegue ao fim do disco com dores nos rins. Devia doer-lhe tudo – os rins, o estômago, as pernas, os braços, a cabeça. E o ombro.

Talvez Infinito Presente não seja, como Camané diz, o mais negro dos seus discos – há alguns temas menos introspectivos (para usar a expressão dele); talvez não seja um disco apenas sobre o tempo; mas é o álbum mais inteiro de Camané, aquele em que o fadista mostra toda a gama dos seus recursos. Se antes cada álbum era como que um plano de um homem a escalar uma montanha (pessoal), a cair e a reerguer-se, agora temos um homem batido, que não pode fingir que não aprendeu como o mundo funciona. Camané já foi James Dean; agora é Clint Eastwood.

Diz Camané: “Sou um corredor de fundo”. Tanto que demora cinco anos a fazer um disco. Nada que o incomode: “Os discos têm de ter uma história e essa história não se faz num ano ou dois. Só quando essa história está feita é que se pode gravar um disco novo”.

Infinito Presente é a história toda de Camané, do que ele sentiu lá dentro e do que ele viu cá fora.

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