Salman Rushdie: "O mundo editorial é a personificação da liberdade de expressão"

Salman Rushdie defendeu a liberdade de expressão depois do boicote do Irão à sua presença como orador convidado na Feira do Livro de Frankfurt que abre agora. O escritor não respondeu a perguntas.

Foto
O escritor britânico na Feira do Livro de Frankfurt REUTERS/Ralph Orlowski

É a segunda vez que Salman Rushdie visita a Feira do Livro de Frankfurt. Da primeira, Rushdie, impressionado com a dimensão do evento e com a sua diversidade, sentiu-se optimista em relação ao futuro do “mundo das palavras”, encorajado como escritor, porque viu uma indústria com “tanta vida e tanta energia”.

Agora voltou, mas com a feira ainda de portas fechadas.

“Irei lembrar-me sempre dessa primeira visita à feira. Fez-me ver que o mundo editorial, esta fantástica indústria, é de alguma maneira a personificação da liberdade de expressão, porque ela está expressa em todos os livros de que se falará por aqui. Os guardiões da liberdade de expressão têm de ser encontrados na indústria editorial”, defendeu o escritor britânico, que esta terça-feira de manhã esteve na conferência de imprensa de abertura da 67ª edição da Feira do Livro de Frankfurt que quarta-feira abre as portas tendo como país convidado a Indonésia. Até domingo, estarão na Feira do Livro de Frankfurt 7200 participantes vindos de mais de 104 países. Mas entre eles não estará o Irão, que cancelou a sua presença depois de saber que o escritor britânico seria o orador convidado.

A semana passada, Seyed Abbas Salehi, ministro da Cultura e da Orientação Islâmica, pediu à Feira do Livro de Frankfurt para cancelar esta participação do autor de Os Versículos Satânicos, que em 1989 foi condenado à morte por uma fatwa decretada pelo ayatollah Khomeini, por entender o convite ao escritor como “um acto anti-cultural”.

O governo iraniano apelou a que outros países islâmicos também boicotassem a feira – que ironicamente tem esta edição como convidado de honra a Indonésia, país com a maior população de muçulmanos no mundo – pois considerou que, “sob o pretexto da liberdade de expressão", a feira "convidou uma pessoa que é odiada no mundo islâmico" e "criou uma oportunidade para Salman Rushdie... fazer um discurso”, segundo desclarações à agência AFP.

Mas nenhum país islâmico cancelou a sua participação até agora e, apesar do boicote oficial do Irão, editores iranianos independentes estarão presentes no pavilhão da Literatura Infantil e na Galeria Gourmet, dedicada à gastronomia.

“A liberdade de expressão não é negociável”, foi a resposta que Juergen Boos, o director da Feira do Livro de Frankfurt, deu ao governo iraniano. Na conferência de imprensa desta terça-feira que serviu também para assinalar a publicação na Alemanha do mais recente romance de Salman Rushdie, Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites (ed. Dom Quixote, já à venda nas livrarias portuguesas), o director da feira lembrou que a liberdade de expressão não é algo de abstracto, é nela que assenta qualquer sociedade democrática.

Boicote do Irão, segurança apertada

“Nos últimos dias, em todo o mundo, foi noticiada a presença de Salman Rushdie na Feira do Livro de Frankfurt e o consequente boicote do Irão. Quero dizer-vos que não estou feliz com esse boicote, perdemos uma chance de trocar ideias com os nossos colegas iranianos”, disse na conferência de imprensa Juergen Boos.

“Há um aspecto central na nossa civilização que não é negociável: a liberdade de expressão, a liberdade de se ter uma opinião. Podemos não concordar com essa opinião mas temos de falar sobre ela. Falar é sempre a melhor alternativa”, disse. “Os editores têm de ‘perturbar’, tal como Salman Rushdie continua a perturbar com a sua literatura. Mas não se iludam, não só temos de perturbar como temos de criar pontes”.

Para entrar na sala do Centro de Congressos, onde decorreu a conferência de imprensa com Salman Rushdie, os jornalistas, que tinham de estar previamente inscritos para ser verificado se não tinham registo criminal, tiveram de passar por procedimentos de segurança tal como se estivessem num aeroporto.

Na sala, Salman Rushdie tinha perto de si seguranças e mal acabou a sua intervenção saiu rapidamente por uma das portas, desculpando-se com o avião que tinha à espera. O escritor não respondeu a perguntas, só fez o discurso.

Na sala estavam alguns dos seus editores espalhados pelo mundo, uns vindos dos “tempos mais difíceis” e outros dos tempos mais recentes, menos difíceis. “Agradeço o trabalho que os editores fazem pelos escritores em países onde a vida não é fácil para quem escreve”, começou por dizer.

“Damos por adquirido que não precisamos de discutir a liberdade de expressão no mundo ocidental. Ela devia ser como o ar que respiramos. E não deveríamos ter de estar a discutir a importância de termos ar para respirar numa parte do mundo em que acreditamos ter liberdade. A batalha pela liberdade de expressão foi ganha pelo Iluminismo francês mas não podemos esquecer que é preciso continuar a lutar”, disse o escritor, explicando que a causa são vários fenómenos recentes. “Um deles é a chegada do perigo e da violência contra escritores, editores, tradutores e livreiros. Aquilo que devia ser um negócio pacífico transformou-se numa guerra e os editores e escritores não são guerreiros, não têm armas”, afirmou.

Rushdie lembrou ainda que em vários pontos do mundo tem nascido um sentimento “politicamente correcto” que se torna perigoso: em Londres houve recentemente um seminário sobre liberdade de expressão em que os oradores foram boicotados; nas universidades americanas há quem defenda que se coloquem avisos nos livros para que os alunos saibam antes de os lerem que estes podem conter ideias desafiadoras. “Isto até podia ser engraçado, só que não é divertido...” , disse quando a sala se riu ao ouvi-lo contar a história.

“Por isso a liberdade de expressão não está só ameaçada pela violência e pelo terrorismo, está também ameaçada por este tipo de coisas”, defendendo a universalidade da liberdade de expressão. “Ao olharmos para a natureza humana, vemos que o que os seres humanos têm em comum é o discurso. Somos aquilo a que chamo ‘um animal contador de histórias’. Somos seres comunicantes, somos o único animal que conta histórias a si próprio para perceber que tipo de animal é.”

Uma vida humana é uma história, é uma narrativa incompleta. Seja qual for a língua que se fale ou a religião que se tenha é através das histórias que nos percebemos a nós próprios. “Por isso limitar a liberdade de expressão é censura mas é mais do que isso. É também um assalto à natureza humana, algo que nos impede de ser o tipo de criaturas que somos”, defendeu o autor de Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites, romance que se inspira nas tradicionais lendas maravilhosas do Oriente, combinando elementos das Mil e Uma Noites com ficção científica e heróis da banda desenhada.

Por estes dias muitos outros escritores irão passar pela feira. Ken Follett virá lançar um videojogo a partir do seu romance Os Pilares da Terra, mas estarão em Frankfurt também a escritora chilena Isabel Allende e o antropólogo britânico Nigel Barley.

Outro dos temas desta feira será a questão do acesso à cultura em campos de refugiados. Pela primeira vez, estão a ser organizadas visitas à feira e entradas grátis para grupos de refugiados, que têm chegado em grande número à Alemanha. 

O PÚBLICO viajou a convite da Embaixada da Alemanha

 

Sugerir correcção
Comentar