A lei, o deserto e Viggo Mortensen

É pragmático, tudo se define pela acção, é como que uma projecção do lado interiorizado e reflexivo da escrita de Albert Camus - Longe dos Homens adapta um conto do escritor. É como um western

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Albert Camus não é o escritor mais na moda, nem é um escritor assim tão adaptado pelo cinema, havendo sobretudo memória da adaptação de O Estrangeiro que Luchino Visconti dirigiu em 1967, com Marcello Mastroianni no protagonista.

A grande particularidade de base de Longe dos Homens, segunda longa-metragem do francês David Oelhoffen, é a sua inspiração camusiana. O ponto de partida é um conto do escritor de origem argelina, O Hóspede, publicado em 1957. Estamos na Argélia, nos momentos iniciais, ou ainda meramente indiciadores, da guerra pela independência, com a tensão entre colonos franceses e a população árabe a crescer, e a um professor primário (Viggo Mortensen) numa localidade isolada cai nas mãos a incumbência de conduzir um jovem árabe (Reda Kateb), acusado de matar um primo, até à cidade mais próxima para ser entregue à justiça. Depois de um preâmbulo – que é o que mais corresponde ao conto de Camus – em que ambos travam conhecimento, enquanto o árabe é mantido sob custódia na pequena escola, põem-se ao caminho, num jornada pelo deserto, tratado como um território de “fronteira” onde a lei é incerta ou ineficaz, de forma aproximável ao de tantos westerns clássicos.

Tudo é bastante singular, das ressonâncias (políticas, filosóficas) que a convivência do par de personagens suscita ao tratamento, resolvido numa austeridade muito pragmática, que Oelhoffen faz da escrita de Camus. Em conversa telefónica com o realizador, queremos começar por saber se o que o conduziu a este filme foi um interesse genérico pela abordagem da obra de Camus ou, mais simplesmente, uma atracção por esta história específica. Num primeiro momento a resposta de Oelhoffen é simples: há muito tempo que se sentia atraído por este texto em concreto (um conto de apenas 12 páginas), que tinha “descoberto por acaso” e pensou no filme como uma maneira de descobrir porque é que ele o "tocava tanto”.

Mas quando lhe perguntamos em que medida a questão histórica e o contexto argelino eram importantes para essa sua atracção a resposta adensa-se. Oelhoffen precisa que o relato de Camus (embora publicado em 1957) foi escrito em 1954, num momento em que a guerra ainda não tinha de facto começado. “Mas o texto de O Hóspede", continua, “dá-me para o primeiro quarto de hora de filme, mais ou menos”. A partir daí a inspiração “são as Crónicas Argelinas, sobretudo as mais antigas, escritas ainda nos anos 30, onde Camus já prenunciava a guerra como algo inevitável, dada a relação entre os franceses e as populações locais”.

E se ele próprio, David Oelhoffen, não tem nenhuma relação directa com a Argélia, o seu pai "foi lá professor primário [como o protagonista do filme], esteve ligado aos movimentos independentistas e tinha uma conexão mais ou menos subterrânea com o PCF. Nunca soube exactamente o que é que ele lá fez porque ele nunca me falou muito disso, mas sim, há esta relação”. Que portanto cria uma aproximação pessoal entre o realizador e o protagonista da história, assim como sugere um reflexo do próprio percurso de Camus.

Tudo pela acção
Em todo o caso, a força de Longe dos Homens está na maneira como se furta a ser um “filme de tema”. É pragmático, tudo, inclusive as personagens, se define pela acção, é como que uma projecção do lado interiorizado e reflexivo da escrita de Camus. As coisas estão lá, inclusive a “questão argelina”, mas raramente são trazidas para o primeiro plano, aparecem por reflexos, por sinais, ou por momentos razoavelmente curtos, sem sublinhados.  Longe dos Homens descarna a narrativa, procura ficar-lhe só com o osso, e esse “osso” é razoavelmente universal: um território não dominado, quase selvagem, e as questões que isso coloca, seja em termos de identidade seja em termos de relação com a lei. Oelhoffen concorda com esta observação, e é ele que menciona a palavra western que nos estava no espírito desde o visionamento do filme quando diz que “consegue imaginar o essencial desta história em muitos lugares, por exemplo no território da velha ‘fronteira’ americana”.

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Pegando na deixa, sugerimos que um dos temas cruciais do western enquanto género é justamente a questão da lei, e da sua difusa aplicação. Oelhoffen acrescenta: “Mais do que apenas a lei, tomada como absoluto, é a existência de várias leis, pessoais ou comunitárias; aqui, por exemplo, há a lei dos colonos franceses e a lei dos árabes” (e, acrescentamos nós, variadas interpretações de cada uma dessas leis). “Mas penso”, continua, “que a questão central tem a ver com o confronto entre leis diferentes”. Ou a origem do conflito: só uma delas pode prevalecer.

O que nos leva a outra questão fulcral: a identidade. A identidade não como um adquirido mas como uma escolha, em simultâneo uma manifestação de liberdade e responsabilidade. É um pouco aquilo de que, ao longo de todo o filme, o professor primário tenta convencer o seu cativo/protegido: que ele tem, pelo menos, uma margem de escolha (é um dos melhores planos do filme, quando Mortensen, do topo da paisagem, fica a ver Kateb a hesitar entre o destino que escolhe: ou a cidade ou o deserto). Mas a identidade é também algo atribuído pelos outros. Numa cena o professor diz: “Os meus pais eram imigrantes espanhóis, os franceses tratavam-nos como se fôssemos árabes e os árabes como se fôssemos franceses”. É uma frase, diz Oelhoffen, que reflecte “a experiência do próprio Camus, cuja mãe era espanhola, havia aliás uma grande comunidade argelina de imigrantes espanhóis que os franceses tratavam como árabes”. Mas, voltando à questão da identidade, “a personagem central é alguém que se enganou: pensava que era uma coisa, via-se como um argelino, e depois percebe que para os argelinos ele nunca será um deles”. É uma questão “muito presente no mundo contemporâneo, em França e noutros sítios, e penso que tenderá a intensificar-se com o aumento dos fluxos migratórios: pessoas que pensam ser uma coisa, franceses por exemplo, e se apercebem que o mundo à volta as vê como outra coisa, árabes por exemplo”.

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Longe dos Homens reúne dois contributos pouco esperados num filme francês com estas características: a música original (composta por Nick Cave e Warren Ellis, com tonalidades “westernianas” que parecem um tanto deslocadas mas não deixam de fazer o seu sentido) e a presença de Viggo Mortensen (que não parece nada deslocado, acredita-se nele a partir do primeiro minuto). Oelhoffen “sabia que não queria um actor francês”. Queria um actor que “encarnasse por si mesmo a questão da identidade dividida ou difusa”. E Viggo “é um actor assim, ele próprio não sabe se é europeu, americano ou argentino [Mortensen viveu grande parte da juventude na Argentina], e ninguém consegue saber se é um actor de Hollywood ou anti-Hollywood, tanto o vemos em blockbusters como em filmes de autores marginais [é por exemplo o protagonista do último filme de Lisandro Alonso]”. Chegou a ele “por amigos de amigos”, que lhe garantiam que o actor estaria receptivo. Quando se encontraram pela primeira vez, Mortensen já trazia debaixo do braço uma biografia de Albert Camus. Oelhoffen soube imediatamente que tinha encontrado o seu actor.

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