O Kino mostra o mundo sem pessoas e as pessoas sem mundo

Homo Sapiens e Havarie, dois documentários paredes-meias com o experimentalismo, são os grandes filmes da edição 2017 da Mostra de Cinema de Língua Alemã.

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Homo Sapiens, de Nikolaus Geyrhalter, inventaria uma série de estruturas que o Homem construiu e depois abandonou DR
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Homo Sapiens, de Nikolaus Geyrhalter, inventaria uma série de estruturas que o Homem construiu e depois abandonou DR
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Havarie, de Philip Scheffner, é um extraordinário mosaico sonoro do drama dos refugiados DR

A edição 2017 do Kino, inaugurada na noite de quinta-feira com Grüße aus Fukushima de Doris Dörrie, não inclui “o” filme alemão de que toda a gente falou em 2016, Toni Erdmann, de Maren Ade (nas salas a partir do próximo dia 16), cujo efeito “bola de neve” iniciado em Cannes abafou o contudo bem interessante Wild, de Nicolette Krebitz (São Jorge, Lisboa, dia 21, 23h; Passos Manuel, Porto, dia 28, 22h30; Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra, dia 3, 21h30). Mas, em compensação, esta Mostra de Cinema de Língua Alemã – que decorre até dia 24 em Lisboa, de 26 a 29 no Porto e de 1 a 3 de Fevereiro em Coimbra – vai mostrar, em encerramento oficial (São Jorge, dia 24, 21h), o notável filme de Maria Schneider sobre Stefan Zweig (que, também ele, chegará às nossas salas em Fevereiro) e, sobretudo, duas das experiências mais poderosas do cinema documental contemporâneo.

Revelados nas secções paralelas do festival de Berlim em 2016, e misteriosamente ausentes dos principais eventos portugueses dedicados ao “cinema do real”, Homo Sapiens, do austríaco Nikolaus Geyrhalter (São Jorge, dia 20, 19h; Passos Manuel, dia 27, 19h), e Havarie, do alemão Philip Scheffner (São Jorge, dia 22, 19h), exploram as potencialidades puramente formais do cinema para abordar o mundo contemporâneo de pontos de vista complementares, para mostrar como a atenção aos grandes temas dos nossos dias não tem forçosamente de ser trabalhada de acordo com a “linha branca” das convenções.

Nikolaus Geyrhalter (n. 1972) é um cineasta conhecido dos habitués dos festivais portugueses, onde muita da sua obra anterior foi sendo exibida, com especial destaque para Our Daily Bread (2005), sobre a origem dos alimentos na nossa sociedade. O seu cinema é de uma enorme coerência – dir-se-ia mesmo: de uma enorme rigidez – formal, aplicando um mesmo dispositivo: planos longos de câmara fixa, sem narração nem comentário de espécie nenhuma, a que o trabalho de montagem e organização atribui contexto e lógica.

Homo Sapiens leva, no entanto, esse dispositivo a um desarmante ponto-limite: o alvo de Geyrhalter, aqui, são estruturas ou locais construídos pelo homem mas que foram entretanto abandonados. Um pouco como Manuel Mozos fez no seu Ruínas, mas de um modo inteiramente diferente, com um cuidado formal que faz pensar em Andrei Tarkovsky, Geyrhalter percorre linhas de comboio, parques de diversões, cinemas, centros comerciais, restaurantes que ainda têm todas as marcas da vivência humana, e que em alguns casos parecem ter sido abandonados a meio de algo.

Fukushima e Chernobyl vêm imediatamente à cabeça; as pistas são baralhadas porque Geyrhalter não identifica a localização de cada sequência, mas a sensação com que saímos de Homo Sapiens é a de termos assistido a uma espécie de “memória descritiva” daquilo que se perdeu, mostrada de modo rigorosamente arquitectónico mas imbuída de uma emoção subterrânea, à medida que compreendemos que estes locais já não são “nossos”, que, a natureza começou a tomar conta deles e a fazê-los seus.

Se Homo Sapiens é um filme da imagem, Havarie é um filme do som. O projecto inicial do alemão Philip Scheffner (n. 1966) não era o filme que acabou por fazer, mas sim um documentário mais tradicional sobre a questão dos refugiados, partindo de um episódio real ocorrido em Setembro de 2012, quando o paquete Adventure of the Seas encontrou, ao largo de Espanha, um barco com 13 argelinos procurando chegar à Europa, e ficou durante 90 minutos parado ao lado da embarcação enquanto os meios de salvamento não chegavam. Scheffner entrevistou, ao longo de vários meses, um casal argelino que vive separado – ele na Argélia, ela em França – mas também a tripulação russa e filipina de um porta-contentores e tripulantes e passageiros de um navio de cruzeiros. E, depois, face à crise crescente dos refugiados, deitou fora as imagens que tinha rodado ao longo desse período, para usar exclusivamente o seu som.

No écrã, ao longo de 90 minutos, vemos apenas quatro minutos de imagens do tal barco argelino rodadas por um passageiro irlandês do Adventure of the Seas e colocadas no YouTube, desaceleradas para preencher hora e meia de projecção; é no som que tudo se passa, com as comunicações em tempo real entre o Adventure of the Seas e o centro de salvamento marítimo de Cartagena a marcarem a passagem do tempo enquanto Scheffner introduz os depoimentos do casal argelino, dos tripulantes russos e filipinos e franceses, do passageiro irlandês, para construir um extraordinário mosaico sonoro, todo em filigrana, que nos faz compreender, de dentro, o porquê dos riscos envolvidos nesta busca de uma vida melhor. Estamos no mesmo território de experiência formal do Eldorado XXI de Salomé Lamas ou do Blue de Derek Jarman – e Havarie (palavra alemã que significa “acidente” ou “incidente”) faz esse experimentalismo parecer a coisa mais simples e acessível do mundo.

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