A isso chamamos os dias

A poesia de Miguel Cardoso atreve-se a respirar a cidade, sem pecar por excesso de zelo nem se perder na distância da estratosfera

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Uma estreia não propriamente precoce, já depois dos 30 anos — Que Se Diga Que Vi como a Faca Corta (Mariposa Azual, 2010) —, talvez permita explicar alguma da assertividade da poesia de Miguel Cardoso, que poucas vezes se perde de um rumo que seja seu. O que talvez passe por uma atitude de “fincar bem os pés”?(“Que Se Diga”) e pelo sentido de uma apóstrofe como “Ensina-me uma língua/ que arranhe./ É só isso”.” (id.). Um indício camoniano que não deveria perder-se de vista, perante o mais recente livro do poeta, À Barbárie Seguem-se os Estendais. A sua atenção ao concreto parece ganhar corpo, quase literalmente, nos poemas; o seu trabalho discursivo é capaz de uma violência que não descontrola os produtos do verso.

Seria escusado tentar encontrar nas referências, epígrafes e alusões a Ruy Belo, detectáveis nesta poesia, a raiz do seu fôlego tantas vezes de uma amplidão desafiante. É possível que a origem dessa respiração longa, que condiciona e alimenta estes poemas, resida menos nas figuras nomeadas — como Charles Olson, ou Carl Sandburg — do que em alguém como Walt Whitman, no seu discursivismo aparentemente dispersivo. Ou, melhor, na convergência de todos e na diluição de qualquer uma dessas vozes. É na depuração e na superação dessas informações culturais que surge a valia autónoma desta poesia. Mesmo quando parafraseia Wordsworth — “Uma língua/ como a falam os homens/ mesmo que nem sempre o saibam” (Que Se Diga) —, Miguel Cardoso não introduz uma estaca num culminar de referentes cultos. É de outra coisa que se trata. Não é inimaginável conceber para esta poética uma atitude que, sem esmagar os mestres — ou a possibilidade dessa existência —, os trata de igual para igual, sem laivo de solenidade ou desnível hierárquico. A bancada de trabalho que se poderia conceber para esta poesia não é, de resto, exclusivamente dedicada aos praticantes da poesia que iluminaram (ou obscureceram, conforme as posições) o caminho até aqui. Bem ao contrário, Miguel Cardoso convoca para o seu laboratório elementos vincadamente díspares, que nem sequer estão todos vinculados à tradição culta. Nem pertencem, em certos contextos, ao sistema das artes. Por exemplo, um dos factores dignos de nota é um micro-realismo transversal à teoria e prática de qualquer disciplina, que atenta em especial a pormenores de uma textura urbanística convocados em certo tom menor. É o caso dos estendais e dos pátios, que parecem compelir essa menoridade tímbrica. A mesma que já estava, de certa forma, em causa nas “miudezas do ar” de Pleno Emprego (Douda Correria, 2013). Não se trata, exactamente, da virulência — nem da violência — de transpor para esta poesia o “realismo sujo” de além-fronteira. O que aqui se agita é mais uma operação de escolha do que a dedicação abrangente aos vectores declaradamente sórdidos de certo contexto epocal e/ou geográfico. Esse gesto optativo conduz a poesia de Miguel Cardoso a uma jurisdição circunscrita, de fronteiras reconhecíveis. Um mapeamento que, não impede, apesar disso, o contraste de paisagens que se espraiam sobre o estirador do poeta. Vastidões continentais ou imaginários transatlânticos que fazem derivar a atenção do leitor e do sujeito dos poemas e criam um pano de fundo mutável e ondulatório.

Este é “um verso que aspira a prosa” (Os Engenhos Necessários, &etc, 2014), mas por percursos menos óbvios do que pode pensar-se — por vias, pelo menos, não exclusivas. Se o livre-trânsito que o poeta concede à forma dos seus poemas os aproxima, muitas vezes, do que chamamos prosa — mas sobretudo dessa espécie de versículo presente na escrita do já citado Whitman —, a contiguidade dá-se mais pelo afastamento em relação ao princípio da música enquanto harmonia. O movimento contrário é o da aproximação desta poesia ao primado da fala, da raiz demótica do discurso urbano. Essa imersão no discurso sincopado, imprevisível — caótico, de certo modo —, que é o da própria vida quotidiana, conduz a presenças distintas no texto dos poemas. Não há nestes versos uma encenação, ou qualquer metaforismo que distancie a frase da sua incidência citadina — “Saio à rua sim para cravar versos” —, porque eles parecem afirmar a sua filiação numa espécie de problemática dos espaços da cidade. “Viver faz falta aos versos” (Fruta Feia, Douda Correria, 2014).

Os poemas incluem, não poucas vezes, despistes, com os quais se recusa uma excessiva estabilização de certas equações consagradas pelo uso padronizado. Ao introduzir a noção de “seguir pistas de som para a paisagem americana/ até encontrar a música do que vinha antes”, o autor põe em prática uma arte combinatória que incorpora o demasiado dito com o menos esperável. Como, noutro poema, “uma luz de presença”, ou “jogar às cartas de aviso de despejo”, demonstram que a inclusão de expressões idiomáticas, se pode, em certos momentos, gerar efeitos de dispersão, por sobrecarga, consegue, em algumas incidências, dar um nó exacto onde ele, por certo, é mais fulcral, como o fim do poema. É como se a linguagem fosse esse último reduto de dignidade e altivez para lidar com o destempero da actualidade, contra a prepotência dos factos dados como consumados. Num posfácio que é uma revisão do conceito de dedicatória, Miguel Cardoso oferece “todo o meu melhor neo-realismo”. Descontada a ironia trans-histórica, permanece o ânimo avisadamente pragmático destes poemas.

Esta é uma poesia política, que não negligencia o investimento formal, mas que disponibiliza nos seus versos um relatório fragmentário e eficaz de signos reconhecíveis. Estes, embora não sejam representações excessivamente denotativas de certo estado de coisas, formulam quadros de referência que situam os poemas de Miguel Cardoso numa certa forma de entender o seu próprio tempo. O que sucede é que, através de cadeias não lineares de léxico — “Vimos vedações em torno/ de um império de atum em lata” —, que concatenam diferentes níveis de sentido, essas leituras são distorcivas. Não enquanto manobra de diversão, mas como técnica expressiva para dizer certo horror. Ao resgatar um elemento especificamente trivial, de aplicação quase ubíqua, aqueles dois versos fazem uma asserção resoluta acerca do quotidiano que lhes dá forma. É por isso que, noutro quadrante — que não deixa de ser simbólico —, Camões surge, mas apenas “já muito em pedaços”. Como se essa descrição nos lembrasse de um esfacelamento de tudo através de um alegado símbolo da nação, de quem Almada disse o que disse, a propósito de barrigas que se enchem e de poetas nacionais que vão a enterrar em vala comum.

A torção do tempo verbal em “Regressámos ao real” acentua não só a passagem do tempo, desde essa expressão distante e inaugural da poesia portuguesa, mas também uma homenagem equacionada ao longe. Esse manejo é que permite que o poeta só aparentemente se exprima no registo mais raso. Ao produzir um dístico como “Daqui vejo chegar o correio/ sorvendo café agora frio”, inviabiliza o “aqui e agora”, que é apanágio da ficção do poema, pela simples introdução do advérbio “agora”, que, desde logo, pressupõe a passagem do tempo. Esse choque de temporalidades funciona como se as partículas do poema sofressem uma aceleração, e todos os seus sentidos recebessem o impulso de um choque adicional.

Os poemas de À Barbárie Seguem-se os Estendais constroem-se sob dois possíveis signos: Camões e o cinema. A sétima arte é cenário e sede de evocação — “isto passa-se afinal em Lisboa/ como nos filmes” —, ao mesmo tempo que configura o estranho horizonte de uma ameaça de derrocada. Enquanto “grande ilusão”, o cinema encarna perfeitamente essa condição, replicando os simulacros e as imagens ilusórias de um presente que parece exaltá-las a todo o instante. O poeta do cânone nacional desdobra-se em encarnações distintas que se tornam especialmente pertinentes nestes versos. Enquanto componente paródico, mas também como ponto irradiante de uma toponímia que aqui é perseguida. E, como é óbvio, Camões funciona como metáfora de uma nação. Um autor que sintetiza o paradoxo nacional e a relação traumática entre o poder e a cultura. À Barbárie Seguem-se os Estendais ergue uma questionação e um combate a “todo o catálogo de solturas banais” que resume o cenário e o limite dos seus poemas.

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