A irressistível atracção da música para o grande ecrã

Com uma taxa de ocupação de 89%, os Dias da Música foram um sucesso de público. Depois da música no cinema, o Centro Cultural de Belém propõe para 2016 A volta ao mundo em 80 concertos.

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NUNO FERREIRA SANTOS
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Dedicada à música no cinema, a edição de 2015 dos Dias da Música, que terminou este domingo, atraiu um numeroso público e novos espectadores, a avaliar pelo ambiente efervescente que se vivia nos corredores do Centro Cultural de Belém, mas também por um inquérito respondido por 1.068 pessoas, das quais 27% vieram pela primeira vez ao festival. A temática permitia um enorme leque de possibilidades e de itinerários, quer através da história da música, quer da história do cinema, bem como uma ampla diversidade de géneros e estilos: desde as obras escritas propositadamente para o grande ecrã às que nasceram noutros contextos e foram depois incorporadas no cinema. Não faltaram também as projecções de filmes, os espectáculos mutimédia e as actividades para os mais novos promovidas pela Fábrica das Artes.

Até às 17h de domingo tinham sido vendidos 26.646 bilhetes, o que corresponde a uma taxa de ocupação de 89%, a maior dos últimos anos segundo Miguel Leal Coelho, vogal do Conselho de Administração. Dos 64 concertos em sala, 35 esgotaram. Um total de 1.700 músicos, número que inclui os profissionais e as várias escolas do ensino vocacional da música de diversos pontos do país que actuaram no foyer do Grande Auditório e no Espaço Música Livre, responderam ao desafio, criando programas que celebram a música no cinema através das obras originais, mas também de arranjos e improvisações. Se por um lado o programa era um mosaico demasiado heterogéneo, tinha a vantagem de poder contemplar todos os gostos.

No sábado, o trio formado por Vera Morais (flauta), Mário Franco (contrabaixo) e Francisco Sassetti (piano) recriou fados e canções dos primeiros filmes sonoros portugueses desde A Severa e Gado Bravo, com música de Frederico de Freitas e Luís de Freitas Branco, até comédias tão célebres como Aldeia da Roupa Branca, Maria Papoila e O Costa do Castelo, cuja música se deve a compositores como Raul Ferrão e António Melo. Num alinhamento que culminou na Cantiga da Rua e que foi despertando o crescente entusiasmo do público, estas melodias que povoam o imaginário colectivo ganharam um outro colorido tímbrico, mas a sua combinação com a exibição de imagens numa sequência livre, intercaladas com  projecções dos gestos dos próprios músicos entre cada peça, acabou por ser desconcertante, já que na maioria dos casos a música que se ouvia não coincidia com os excertos do filme a que tinha sido destinada.

Em contrapartida, tivemos no domingo um excelente exemplo de sincronização, bem exemplificativa do papel crucial que a música tem no cinema mudo e no cinema em geral: a banda sonora criada pelo pianista João Paulo Esteves da Silva e pelo contrabaixista Carlos Bica para a genial comédia The Navigator, de Buster Keaton. O resultado foi exemplar na forma como traduziu a narrativa, o suspense, os efeitos cómicos, dramáticos e descritivos (como a tempestade) ou a sonorização dos pequenos detalhes com sugestivas intervenções do contrabaixo,  ao mesmo tempo que constituiu um todo coerente, com um motivo melódico específico, à maneira de leitmotiv associado ao casal protagonista enunciado prela cintilante sonoridade do piano de João Paulo Esteves da Silva.

O cinema é pródigo na criação de ambientes a partir da música orquestral, domínio amplamente usado pelos compositores que se especializaram em bandas sonoras, mas a música vocal polifónica surge também em muitos filmes para caracterizar épocas históricas. Foi esta a proposta do Huelgas Ensemble através de um programa que mostrou mais uma vez o alto nível de especialização do grupo em repertórios dos séculos XVI e XVII, patente por exemplo nos trechos de William Byrd que ilustraram o filme Elisabeth, de Shekhar Kapur, com Cate Blanchett como protagonista, ou na interpretação do famoso Miserere, de Allegri, associado a filmes como As Cinzas de Ângela e Momentos de Glória. O grupo de Paul van Nevel foi igualmente revelador nas três  peças corais de Bruckner (Ave Maria, Os Justi e Virga Jesse), nas quais mostrou cuidadas nuances de colorido e uma ampla paleta dinâmica em estreita sintonia com a expressividade do texto. Faltou porém maior recorte e nitidez de fraseados no Ave Verum, de Mozart, acompanhado pelo Ensemble Darcos, cuja prestação no Cântico de Jean Racine, de Fauré, careceu de suficiente coesão e de apuro.

De Eisenstein à Guerra das Estrelas
Entre os exemplos mais notáveis de simbiose entre a música e o cinema encontra-se a grandiosa partitura coral sinfónica que Prokofiev escreveu para o filme Alexander Nevsky, de Sergei Eisenstein. Prokofiev acreditava que o cinema oferecia novas e fascinantes possibilidades ao compositor e defendia que este devia estudá-las a fundo em vez de se limitar a escrever a música, deixando-a depois à mercê dos profissionais do cinema. Como tal, nada deixou ao acaso, participando no processo de montagem. Este grande épico que conta a história de um príncipe russo do século XIII e do sucesso das suas batalhas contra as hordas invasoras teutónicas – representadas pelas impetuosas sonoridades dos metais, enquanto a Rússia era evocada por melodias de sabor arcaico criadas por Prokoviev à imagem da música tradicional – teve um êxito estrondoso, assim como a Cantata feita a partir da selecção das principais secções da banda sonora. Esta partitura plena de efeitos tímbricos espectaculares e criadora de verdadeiras paisagens musicais, da qual ficou especialmente célebre A Batalha no Gelo, contou, na noite de sábado, com uma interpretação de grande consistência e imponência pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, pelo Coro doTeatro Nacional de São Carlos e pela contralto Larissa Savchenko, cujo timbre eslavose adequa especialmente bem à obra, sob a direcção de João Paulo Santos.

Não faltaram também na programação filmes emblemáticos do universo da música barroca, na qual emerge como principal protagonista. É o caso do magnífico Tous les Matins du Monde, de Alain Corneau, inspirado no romance homónimo de Pascal Quignard, e Farinelli, Il Castrato, de Gérard Corbiau. O primeiro serviu de base ao belíssimo programa apresentado pelo Ludovice Ensemble (dirigido por Miguel Jalôto), o agrupamento português que se tem dedicado com mais regularidade, qualidade e consistência estilística ao repertório do Barroco francês. A magnífica música para viola da gamba Monsieur de Saint Colombe e Marin Marais, cuja conturbada relação é retratada no filme, foi interpretada com grande refinamento pelas gambistas Laura Frey e Sofia Diniz, com destaque para os eloquentes solos desta última e peças vocais tão inesquecíveis como a delicada canção do século XVI Une jeune fillete e a Troisième Leçon de Ténèbres du Mercredi, de François Couperin, tiveram na sopranos Orlanda Isidro e Mónica Monteiro intérpretes de grande sensibilidade expressiva.

Se Tous les Matins du Monde, vencedor de numerosos prémios, se converteu rapidamente num filme de culto, Farinelli, Il Castrato mereceu menos unanimidade, mas contribuiu para tornar ainda mais célebres as proezas vocais e o fascínio pelo mais célebre dos cantores setecentistas. No filme, a voz de Farinelli foi obtida por artifícios tecnológicos, juntando a voz de uma soprano e de um contratenor; no concerto do CCB, o virtuosismo do repertório de Farinelli, nomeadamente árias de Handel, Hasse e Carlo Broschi (irmão do cantor) e a Salve Regina de Pergolesi, foi interpretado pela conceituada meio-soprano Vivica Genaux e pelo agrupamento Concerto de’Cavalieri, dirigido por Marcello di Lisa, que se destacou pela sonoridade brilhante e pela energia rítmica. O tímbre algo andrógino da cantora, a sua grande extensão vocal e agilidade fazem dela uma escolha adequada. Se Genaux teve o senão de abusar por vezes em demasia do vibrato, destacou-se por outro lado pela proficiência das ornamentações nas secções Da Capo, como sucedeu na famosa ária Lascia ch’io pianga do Rinaldo de Handel, que cantou como encore após efusivos aplausos.

Os Dias da Música terminaram em festa com um dos maiores êxitos de sempre – a Marcha Imperial e Tema da Guerra das Estrelas, de John Williams. Para o ano, o tema proposto pelo novo presidente do CCB, António Lamas, e pelo consultor para a área da música, André Cunha Leal, será uma Uma volta ao mundo em 80 concertos, estando previstas várias parcerias e um alargamento às músicas dos vários continentes.

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