A intimidade do mundo

Regresso sempre à quietude das árvores, esses animais de madeira, pé único fincado na terra sem necessidade de caminhar. Sei que a sapiência é uma questão de profundidade, mais do que um percurso pela superfície inteira do planeta. As árvores elevam-se e afundam, mas são sobretudo interiores, saberão algo que não temos conseguido aprender. Um estudo recente explica que, à morte, as árvores emitem ruídos ínfimos, talvez um testemunho, talvez um lamento ou, quem sabe, a celebração possível. Comove-me a hipótese de essas plantas gigantes se expressarem de facto, como se, verdadeiramente, vivessem num estádio de consciência avançada grandemente insondável para a nossa dimensão ainda ansiosa. Talvez as árvores nos assistam, pensem sobre nós, espantadas com o frenesi em que nos metemos.
Fascina-me a hipótese da inteligência consciente da natureza, essa espécie de sociedade das árvores, dos animais, uma sociedade até daquilo que parece matéria morta. Uma sociedade das pedras e das águas. A sociedade das coisas que ardem e de tudo quanto conspira para as fogueiras e para os incêndios. Organizações cultas de uma maneira incompreensível apenas para nós.
Penso na pintura do mestre Armando Alves como a filosofia das inteligências meditativas. A impressão que nos cria é a de que toda a matéria se tem sobretudo como nostalgia da vida, não se colocando nunca apenas como realidade efectivamente morta. É um estádio maduro daquilo que parece aquietar-se por exercício de consciência. Aquilo que medita.
As imagens de Armando Alves são a última maturidade. Depuram como profundamente sapientes. São quadros da família das árvores. Fincam o pé nas paredes, não caminham. Como as árvores, movem-se apenas por intensidade.
Mesmo quando não trabalha a paisagem, Armando Alves cria paisagem, porque alude sempre à amplitude, uma espécie de identidade imaterial que supera os tamanhos físicos do que se mostra. A presentificação dos elementos é sempre mais a sua libertação do que o seu aprisionamento na forma com que se expõem à lei da gravidade. Nas telas de Armando Alves o peso é sobretudo mental. O mundo torna-se espiritual. Uma redenção e uma promessa de perfeição. Apenas o espírito pode depurar-se até à perfeição. Tudo o resto é só a virtude possível.
As árvores são assim por definição. Expõem o corpo à lei da gravidade mas o que significam é mais da dimensão da leveza. São animais de voo porque repassam o vento, reagem ao vento, como se descessem o céu ao rente da terra. Emanando do chão, são verticais e também se suspendem. Pensam os pássaros que elas pairam, como nuvens de folhas. Nuvens baixas camufladas. Não sei entender a arte sem a implicação directa do quase delirante apelo do mundo. Quero dizer, tendo a conjugar poeticamente as realidades, fazendo dos quadros de Armando Alves ideias ancestrais, precedentes, como ideias presentes nas matérias que se fingem de mortas para serem memórias sossegadas, meditações sossegadas. Talvez os quadros de Armando Alves emitam um ruído ínfimo se precisarem de morrer. A verdade é que custa a crer que, silentes nas paredes, não sejam uma consciência específica. Uma sociedade qualquer que amadureça assistindo ao modo pequenino como nos agastamos.
As obras de Armando Alves são da intimidade do mundo. Estão mais perto do invisível do que das evidências. São demoradas imagens das inteligências meditativas. Estão nas paredes e meditam. De todo o modo, têm todo o tempo. São propensas à eternidade, mais ainda do que as árvores. A arte parece vir de sempre e ir para sempre. Algo de si transcendeu a pressa, ainda que possa tantas vezes ser postulado de urgência.
Crescem, há mais de vinte anos, árvores magras à janela do meu quarto. Conheço-as como gente que se esqueceu do caminho para casa e parou para pensar. A arte tem isso. É um percurso que se demora. O caminho para casa é um sentido da vida que ninguém vai encontrar. A arte pensa diante de nós. A olhar para as telas de Armando Alves sentimo-nos induzidos ao decoro. A auscultação da intimidade do mundo não podia ser ligeira. Ficamos como uns pardalitos a aprender a intensificação em detrimento do alarido distractor. Como tudo quanto diz respeito às essências.

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