A inexorável passagem do tempo

Wayne Shorter e o seu quarteto deram um concerto emocionante, evocativo da magia e grandeza daquele que é um dos maiores saxofonistas de sempre

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Wayne Shorter Quartet Dorsay Alavi

Wayne Shorter é, em conjunto com John Coltrane e Sonny Rollins, um dos maiores saxofonistas de sempre e um dos compositores mais influentes da história do jazz. Apetece repeti-lo vezes sem conta.

Autor de alguns dos mais emblemáticos registos jazz dos anos 60, membro dos celebrados Weather Report e companheiro de palcos e estrada de inúmeras outras figuras lendárias como Miles Davis, Art Blakey ou Freddie Hubbard, foi um daqueles músicos que nunca parou.

Fê-lo através dos discos - já em 2013, 49 anos após a edição do seminal Speak No Evil, edita Without a Net, brilhante recolha de gravações ao vivo - e através dos concertos - visionário, reuniu em 2001 um quarteto com o qual viaja desde então por todo o mundo, espalhando a sua visão humanista e orgânica do jazz.

Agora, com a impressionante idade de 81 anos, regressado de novo ao nosso país para um concerto único no Centro Cultural de Belém, reafirma a longevidade e absoluta relevância da sua música. Shorter e o seu quarteto, que integra ainda Danilo Perez (piano), John Patitucci (contrabaixo) e Brian Blade (bateria), tocam durante cerca de hora e meia, deixando toda a sala a aplaudir de pé, visivelmente emocionada e relutante em dar por terminada a ocasião.

Isto apesar de se notar no saxofonista uma visível fragilidade, um cansaço que vai e vem, pequenas hesitações momentâneas e uma menor clareza na articulação de frases mais rápidas. Algo totalmente natural para quem lida diariamente com os efeitos da inexorável passagem do tempo. Mas esse acaba por ser um dos aspectos fascinantes do espectáculo, constituindo-se como um enorme privilégio o facto de podermos observar um artista com a estatura de Shorter a lidar em palco com aspectos que o condicionam e que o saxofonista procura, e consegue, ultrapassar.

A metodologia é conhecida. Shorter e o seu quarteto não ensaiam, as músicas a tocar em cada concerto não são escolhidas previamente e todo o set é fortemente baseado na improvisação, algo que só é possível pela qualidade superlativa dos músicos que o acompanham. Assim, quando entra em palco, Shorter lida apenas com o desconhecido e com a convicção de que a sua música é sobre o fazer desaparecer os limites, como referiu recentemente ao PÚBLICO.

Shorter desafia-nos a nós e desafia-se certamente a si próprio. Sentado durante todo o espectáculo, o saxofonista assume-se como mestre de cerimónias, controlando o que se passa à sua volta com simples gestos musicais, com notas que ressoam emocionalmente muito para lá da sua significância musical.

Ao longo de um primeiro tema com duração de cerca de uma hora (haveria ainda espaço para um segundo tema, mais curto, e dois breves encores), os quatro músicos partem do bem rodado repertório da banda e constroem, num crescendo de musicalidade, energia e emoção, uma música intuitiva e empática, que flui com a mesma naturalidade com que respiramos.

Para isso, muito contribui a dinâmica interpessoal do grupo, com cada um dos elementos invulgarmente atentos aos movimentos musicais dos restantes, complementando-se mutuamente de forma telepática. Não há verdadeiramente espaço para o que se convencionou chamar de "solos". Todos tocam e comunicam simultaneamente.

Shorter entra e sai, por vezes de forma hesitante como quando pegou no sax soprano por breves momentos, soprou algumas notas, e regressou ao tenor visivelmente desagradado com a afinação e tom do instrumento (regressaria a ele posteriormente com toda a pujança que lhe reconhecemos), e protagoniza alguns dos momentos altos da noite, primeiro no tenor, majestoso e profundo, e mais tarde no soprano, mais ágil e incisivo.

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