A imensa liberdade de um rapaz sem fronteiras

Antú Romero Nunes assina um retrato de Don Giovanni, a partir de Mozart, que foge a uma definição. É teatro? É ópera? Viva la libertà, diz-se repetidamente

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Don Giovanni Christophe Raynaud de Lage / Festival d'Avignon
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Antú Romero Nunes Armin Smailovic

Antú Romero Nunes não gosta do teatro. Dito assim, informalmente, numa conversa de fim de manhã, na véspera de partir de Avignon e parece mais uma provocação do que uma virtude. Mas, em boa verdade, esta recusa não é senão um inconformismo.

Antú Romero Nunes, 31 anos, filho de mãe chilena e pai português, nascido e criado na Alemanha, gosta tanto de teatro – da ideia, das possibilidades, da experiência, da ritualização, do encontro – que recusa que esse teatro seja algo definido, definitivo, fechado. Antú Romeno Nunes não gosta do teatro, gosta de teatro. Não é apenas um detalhe.

Criador bulímico escondido atrás de uma sedutora timidez é actualmente artista residente no Thalia Theater, em Hamburgo e desde 2010 que tem acumulado distinções pelas suas encenações a partir de obras que metem medo. Desde a primeira, feita ainda quando era estudante, O Visionário, a partir do romance deixado incompleto por Schiller, até Peer Gynt e Moby Dick, passando por uma adaptação para teatro do filme Rocco e os seus irmãos, de Luchino Visconti, até chegar, este ano, uma não-ópera a partir de Don Giovanni, de Mozart e Lorenzo da Ponte. “É no teatro que devemos experimentar sentir porque tudo faz sentido”, diz, a certa altura desta última festa um compulsivo passional perigosamente à beira do precipício. A frase dita por Don Giovanni poderia facilmente ser aplicada a Antú Romero Antunes. “As pessoas que têm determinadas expectativas têm um problema. Gostava de nunca mais ter que ouvir que ‘as coisas devem ser assim ou então não funcionam’. Quero que o público venha ver os espectáculos, que se divirtam e se não gostarem, pronto, não gostaram”, diz.

Don Giovanni opera nesse princípio que brinca com o diletantismo e a anarquia. A começar pela recusa de uso da música de Mozart. “Mozart gostava de jogos. Viu mais longe do que os seus contemporâneos”. Romero Nunes não é tão ambicioso, sobretudo porque a primeira ópera que encenou, ainda na universidade, em Berlim, a partir de textos de Brecht, não é coisa da qual goste de se lembrar.

O desprendimento com que fala dos seus espectáculos, na maioria respostas radicais às encomendas que tem recebido de vários teatros na Alemanha, diz ele, “são formas de reacção à ideia que fazem daquilo que o teatro quer ser”. “Não quero nada disso”, diz. “Querem ouvir ópera, vão à ópera. O que estamos a fazer não é uma ópera, é teatro”. Don Giovanni, errante feiticeiro que seduz os corações das mulheres é o que de mais próximo, “neste momento”, Antú Romero Nunes encontra da ideia de fim, de queda, de princípio de morte. “Paralelamente à questão da sedução. Há também que falar da liberdade da humanidade. Já não temos que nos libertar das imposições morais. Hoje quebramos regras que limitavam as nossas ambições. Talvez se continuarmos a quebrar essas regras possamos chegar a algo novo”.

No palco, sem música, Don Giovanni e Leporello, numa sedução permanente um com o outro, mestre e criado de torso nu, cinzelado, irresistíveis, sem medo. Na plateia as mulheres que vão seduzir “e os homens que quiserem vir porque já não há medo”. A observar tudo isto, como se fosse o próprio Don Giovanni que, no final troca de lugar com Leporello e observa como foi manipulando todas as mulheres acreditando que em cada beijo se salvaria do seu próprio destino, eis Romero Nunes, que não gosta de prever. “A maior questão não é a de saber se Don Giovanni foi ou não o maior sedutor de todos os tempos. Provavelmente ele não quer saber. Quando se vê perante essa situação [a de seduzir], provavelmente é tudo mais forte do que ele, e ele age conforme o que dele se espera. O que lhe realmente importa é que todos possam estar como quiserem, e que a liberdade seja completa”.

Don Giovanni um hedonista? Antú Romero Nunes um defensor da arbitrariedade? A última encenação que assinou, A Time to love and a time to die, de Fritz Kater e Armin Petras, estreada no Gorki Theater, em Berlim, mostrava um grupo de adolescentes a entrar violentamente pela vida adulta dentro através da recusa de distância entre a sexualidade e a política. Um espécie de Despertar da Primavera, de Frank Wedekind, na Alemanha contemporânea, vista por alguém que se recusa a pertencer a algum território: geográfico, disciplinar, emocional.

Don Giovanni vive dessa liberdade e isso desculpa todas as falhas que ainda possa ter. Por vezes há um modo de interactividade que parece solução de recurso mas, na verdade, talvez seja inebriamento passional.

Há, efectivamente, nesta encenação, uma ópera que o teatro torna buffa, pistas que apontam para uma noção de relação entre os corpos que se quer alheia a princípios, morais e regras. No convite que se lança do palco para que as mulheres possam subir, deixando os homens na plateia, às escuras, cortina descida, há um desejo profundo de refundação do gesto de partilha. Talvez não seja ainda tudo claro. Talvez Antú Romero Nunes esteja ainda a descobrir. Viva la libertà, dizem continuamente todas as personagens. Porque haveria de ser diferente para ele?


Crítico de teatro e dança

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