A história redescoberta com os Amon Düul II

No último dia de Reverence Festival, a veterana banda alemã mostrou que há ainda muita vida na sua música. Mas também houve The Horrors e uma delícia funk chamada Calibro 35.

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Os históricos Amon Düul JORGE PEREIRA
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O guitarrista dos Amon Düul, John Weinzierl JORGE PEREIRA
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Renate Knaup-Kroetenschwanz, a vocalista dos Amon Düul JORGE PEREIRA
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The Horrors VALENTINA ERNO
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Joel Gion JOÃO RIBEIRO

Estamos a meio da tarde, o calor em Valada do Ribatejo é abrasador e Miranda Lee Richards canta para uma plateia despida. A culpa é dos alemães Samsara Blues Experiment, que no outro extremo do recinto aceleram até à estratosfera em rockalhada psicadélica que põe a plateia em rodopio mental vertiginoso. Longe desse cenário, Miranda toca as suas canções folk-rock e canta um verso que retemos neste último dia de festival, sábado: “the blessed fear of the unknown”. Retemos porque, de facto, esse lado de descoberta, abençoada descoberta, sem medos, é parte importante deste festival às portas do Cartaxo chamado Reverence Valada.

Foi aqui que, por exemplo, descobrimos uns italianos de groove elegantíssimo, autores de bandas-sonoras funk, reais ou imaginárias, chamados Calibro 35. No palco Praia, já depois de termos acolhido os históricos Amon Düul II e enquanto esperávamos pela chegada dos cabeças-de-cartaz The Horrors, o quarteto milanês ofereceu ao público uma lição de como pôr corpos em movimento com secção rítmica bem oleada, teclados fervilhantes e guitarra alinhada com o legado de Steve Cropper, dos Booker T & The MGs. Foi uma óptima descoberta e uma bem-vinda fuga ao guião do festival nascido em 2014 e que tem como marca identitária o rock ora mais dado ao psicadelismo, ora em tangente ao metal. Esse lado, o da descoberta, é, de facto, um dos principais atractivos do Reverence. Outro é a possibilidade de assistir a momentos históricos como o do concerto dos Hawkwind, no ano passado, como o da passagem dos alemães Amon Düul II pelo palco principal, este ano, em estreia portuguesa.

Banda-charneira do krautrock alemão da década de 1970, distintos representantes da contracultura musical e social daquele período, ou não tivessem nascido numa comuna radical de Munique, os Amon Düul II carregam consigo essa origem. São agora veteranos: uns, como o guitarrista John Weinzierl, em fato de cavalheiro, distantes da imagem preservada em fotos de época, outros, como o outro guitarrista e violinista Chris Karrer, que surge perante nós como fusão curiosa de Keith Richards com Hunter S. Thompson, próximos daquilo que a música sugere. Liderados pela voz cheia, dramática, de Renate Knaup-Kroetenschwanz, familiar de Grace Slick, com dois bateristas colaborando em encontros e desencontros para manter a máquina em movimento, os Amon Düul II foram viajantes cósmicos e agitadores rock’n’roll, foram memória viva e ainda actuante: são do rock dito progressivo, mas não perdem tempo com desvios inúteis – é um passo dos riffs ruidosos, tumultuosos, à placidez de um folk-rock sobrevoado pelas notas do violino. “I don’t believe in the TV screen”, gritou Renate em Surrounded by the stars. Gritou convictamente – e com razão: perante esta música, escolhemos a liberdade da fantasia ao concreto do ecrã televisivo.

 

Menos público

Com o concerto inspirado da banda alemã tivemos direito a mergulhar na história para descobrir o que ela esconde ainda de relevante, hoje  os aplausos calorosos no final dizem-nos que ainda há muito para aproveitar nos autores de Yeti. Foi deles o concerto mais marcante do último dia de Reverence Valada, sábado. Foram os mais congregadores mas, obviamente, não estiveram sozinhos – das duas da tarde às 6 da manhã, houve 24 bandas a fazerem-lhes companhia no cartaz. Bandas como os Jack Shits, fundados no Barreiro, devotos do rock enquanto experiência abrasiva, que se despediram dos palcos no Reverence – o vocalista será levado pela emigração e, no adeus, fez a festa em modo psicótico Jon Spencer. Bandas como a de Joel Gion, o homem das maracas e pandeiretas dos Brian Jonestown Massacre que reuniu à sua volta os antigos companheiros e nos ofereceu um concerto em que o espírito do grupo surgiu bem representado na divagação shoegaze, no prazer pela melodia pop beatlesca, na visão psicadélica gentil – pena apenas que a voz do agora vocalista de gestos excêntricos lute ainda para encontrar o seu lugar entre o som criado.

Na despedida, vimos os 10000 Russos regressarem a Valada do Ribatejo, de onde saíram no ano passado com contrato discográfico assinado com a editora londrina Fuzz Club, para nos hipnotizarem ao final de tarde com o seu rock minimal, qual pulsar electrónico em corpo rock’n’roll; vimos os barreirenses Act-Ups montarem, ainda de dia, a sua clássica festa dançante (do rock à soul, passando pela country e com fuzz garage à espreita); e vimos os americanos Magic Castles lançarem colorido psicadélico, vintage 60s, sobre a madrugada de Valada do Ribatejo.

Entre uns e outros, os Horrors subiram ao palco principal e, perante o público que se aglomerou para ver a banda mais célebre em cartaz, mostraram como ter pose de garage-rocker e aplicá-la a música que, actualmente, mergulha na escuridão pós-punk, deita mão a sintetizadores ambientais e coloca a voz de tom grave nas proximidades da galáxia Peter Murphy. Ouviram-se Still life ou Sea within a sea e viu-se o perfil do tão magro quanto alto Faris Badwan recortado na escuridão do palco. Viram-se os Horrors enquanto banda mutante que, neste momento, reescreve para si, sempre preocupada com o formato canção, uma história alternativa dos anos 1980. A seguir aos Amon Düul, foram eles os autores do concerto mais celebrado da despedida do festival.

Houve menos público no festival em 2015 do que na edição da estreia, o que era visível tanto no recinto como na vila e se justificará, por exemplo, pela alteração das datas (no ano passado o Reverence decorreu na segunda semana de Setembro). O público, esse, não mudou. Mantém-se curioso e, aparentemente, infatigável – os últimos concertos acontecem já perto do raiar do dia, altura em que os previdentes da tarde, aqueles que vemos dormitando à sombra na relva, se transformam em resistentes na madrugada.

Eis uma lição a reter depois de três dias à beira Tejo, passeando na vila, observando as águas no rio, saltando de concerto em concerto no acolhedor e verdejante Parque das Merendas de Valada. Tudo começa muito cedo, tudo acaba muito tarde. Há muito para aproveitar (e o Reverence não pára). Descobrimo-lo no ano passado, confirmámo-lo este ano, cá estaremos para o viver novamente em 2016.

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