A guitarra é uma cobra nas mãos de Thurston Moore

Figura de proa do rock acampado na zona do experimentalismo, Thurston Moore tem-se aproximado cada vez mais de Portugal. Esta quinta-feira actua em Paredes de Coura; nos últimos meses lançou discos gravados na ZdB com Gabriel Ferrandini e Pedro Sousa, e Margarida Garcia.

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Thurston Moore e os seus pedais: o que ele quer é tocar
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Em Outubro de 2012, Thurston Moore juntou-se a Gabriel Ferrandini e Pedro Sousa para um concerto na ZDB

Desde 2011 que Thurston Moore passa boa parte do seu Verão no papel de professor na Universidade Naropa, em Boulder, Colorado, leccionando a cadeira Machine Boys Are Electronic, dedicada ao estudo e à análise da influência de William Burroughs na criação musical. Um experimentalista a escalpelizar outro. Um fabricante de tangentes entre cultura popular e radicalismo artístico a olhar-se ao espelho através de uma obra alheia. De facto, Moore é um seguidor de Burroughs, assim como os Sonic Youth foram os filhos bem-sucedidos dos Velvet Underground, com uma espantosa longevidade para uma banda de rock no fio da navalha e uma taxa de penetração na cultura popular que em muito raras situações pode ser saudavelmente compatível com as mais venturosas experiências musicais.

Esta capacidade de abarcar num mesmo gesto (como o fez ao longo dos muitos anos com os Sonic Youth) composições de John Cage e canções de Madonna é uma coordenada constante no percurso de Thurston Moore, acabado de anunciar a formação de uma nova banda com Steve Shelley e a baixista dos My Bloody Valentine, Debbie Googe, provavelmente para interpretar ao vivo o material do álbum The Best Day, a sair no Outono – ao mesmo tempo que revelava a edição de uma cassete intitulada Sun Gift Earth, homenagem ao jazz saturniano de Sun Ra neste ano do centenário da sua chegada à Terra. A presente digressão europeia é já suficientemente reveladora da sua imensa largueza de registos. Se na próxima quinta-feira, dia 21, vamos encontrá-lo no palco de Paredes de Coura provavelmente na companhia de uma banda mais apegada ao rock, há duas semanas começou por tocar em duo com o guitarrista Caspar Brötzmann no londrino Café Oto, magnífico pardieiro da música improvisada. Mas não vale a pena apostar em certezas: em 1998, no Sudoeste, os Sonic Youth deram um magnífico concerto, mas de tal forma alienígena no contexto de festival e tão desligado da ideia de actuação para massas que não faltou quem visse nisso uma gritante forma de desprezo pelo público.

Até mesmo quando há planos é natural que Thurston Moore não se esforce especialmente por cumpri-los. Em Outubro de 2012, fruto de uma residência na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, Moore havia de juntar-se, a seu pedido, a dois músicos nacionais propostos pelo programador da ZDB Sérgio Hydalgo: Gabriel Ferrandini (RED Trio, Rodrigo Amado Motion Trio) na bateria e Pedro Sousa (Pão) no saxofone. Após um soundcheck que serviu como único ensaio e sumária leitura do que cada um poderia esperar dos outros dois, pouco se falou de música no jantar que antecedeu o concerto. “Adorei as partes calmas do soundcheck, vamos tocar baixinho, vai ser muito bonito”, lembra-se o saxofonista de ouvir da boca de Moore como declaração de intenções. Só que ao fim de dois minutos do concerto, editado agora em vinil pela portuguesa Shhpuma (Live at ZdB), Moore foi o primeiro a desertar desse plano original. “Foi até ao amplificador, aumentou o volume e começou logo a rasgar”, diz Ferrandini. “Nós pensámos que podia ir para várias direcções, mas acabou por ser um concerto rock’n’roll free, porque estava uma energia incrível na sala, com casa cheia, e era óbvio que teria de acabar por ser uma cena muito enérgica.”

“A nossa maior surpresa foi essa: ser um concerto bastante focado, sempre muito intenso”, retoma o baterista. “Não nos metemos com muitas ideias nem atirámos muita coisa para cima da mesa. Esprememos o sumo de poucas ideias.” Os poucos momentos de calmaria (rapidamente descartados) aparecem assim como uma subida à tona em busca de oxigénio, para logo se investir em nova démarche exploratória, numa desbragada demanda free rock noise. Pedro Sousa, que esperava “algo mais cerebral”, viu-se a ter de responder a uma intensidade sem descanso que traria o lado de rock torcido de Moore para a frente, potenciado pela bateria impetuosa de Ferrandini. “O Thurston toca de uma maneira muito mais sinuosa do que eu esperava”, revela Sousa. “Parecia uma cobra, foi incrível. Tem todo um historial de rock old school que se sente na maneira de tocar.”

 

Escola de rock

Conhecedores da obra de Thurston Moore mas possivelmente mais sintonizados com as colaborações no âmbito da música improvisada, ao lado de Mats Gustafsson e Paal Nilssen-Love (referência maior para Ferrandini) no grupo Original Silence, com Chris Corsano ou os Diskaholics Anonymous, Sousa e Ferrandini não subiram a palco numa posição embevecida de acólitos, embora confessem nunca ter perdido a noção do privilégio de subir a palco com um músico cuja marca na música popular dos séculos XX e XXI está inscrita com a subtileza de um feedback. “Era uma daquelas raras situações de poder tocar rock’n’roll com um rockeiro americano a sério, que vem mesmo daquela escola de pensamento, de som e de textura”, lembra o baterista. Para Ferrandini, o mais elevado estado de consciência de estar a tocar com uma figura daquela dimensão foi menos uma inibição do que um motivo de segurança – “Lembro-me de pensar: este tipo é incrível, posso fazer tudo o que quiser que ele já estará lá à frente à minha espera.”

Live at ZdB é um excelente documento dessa atitude destemida a três, impulsionada pelo vigor de uma primeira partilha do palco, quando não há ainda um código de respostas em vigor. Por isso mesmo, defende Sousa, “neste tipo de encontro seria muito errado ficar demasiado à defesa”. Assim, diante do desconhecido, a única saída era mesmo avançar, aos tropeções que fosse. Essa mesma postura é identificada pelo saxofonista no concerto de Moore com a contrabaixista portuguesa Margarida Garcia, em 2013, também na ZDB, editado há alguns meses pela Headlights como The Rust Within Their Throats. “Vi aquilo do backstage e foi muito mágico, já estava noutro planeta”, comenta. E, de facto, a guitarra de Moore parecia passear por zonas sombrias cada vez mais sugadas por uma ideia de sublimação final. O que é certo para os dois músicos é que a tal qualidade reptiliana de Thurston Moore está sempre presente. E tanto pode descambar em rock como em noise ou na vizinhança de canções. “Ele quer é tocar – com rockers numa noite, minimalistas na outra, pessoal da canção a seguir”, confirma Ferrandini. “Acho que vai sempre à descoberta, sem grandes enredos.

 

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