A Grande Farra do nosso tempo

Manger (comer), de Boris Charmatz (2014), Garagem da Culturgest, 2 de Dezembro, 21h30

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Manger deixa em nós um rasto de perturbação e exaustão Ursula Kaufmann

Há algo nesta dança-performance de Boris Charmatz, cuja ideia base é construir uma peça a partir do acto de comer, de sensações internas como deglutir, digerir ou vocalizar, a trazer-nos à memória “A Grande Farra” (La Grande Bouffe, 1973) e as polémicas que à época fizeram do filme de Marco Ferreri um ícone da década.

Na desesperança existencial dos quatro personagens de Ferreri, reunidos num opulento cerimonial gastronómico, a obscenidade autodestrutiva era revelação de um cínico pacto suicida; em manger um mesmo hedonismo negro surge depurado: os treze intérpretes de Charmatz parecem mergulhados num inquietante estado de torpor. De roupa informal, dispostos por entre o público no espaço despojado da garagem da Culturgest, distinguiam-se pelas resmas de papel A4 (comestível) que traziam nas mãos e que, uma após outra, começam a mastigar e engolir, quais animais ruminantes de expressão ausente. Depois, há corpos a descair sobre o chão. Emitem ruídos guturais, espasmódicos, como se em asfixia. Sucedem-se ciclos de cacofonia e silêncio, tensão e apaziguamento. A sós, em pares, ou em uníssono, parecem lutar ou desejar-se; entregam-se a contorções inimagináveis simulando comer a carne dos próprios pés, braços ou costas. Quando as vocalizações derivam numa polifonia de textos ou cânticos trauteados (materiais sonoros que vão de Beethoven aos dos Sexy Sushi, ou ao escatológico poema Le Bonhomme de merde, de Christophe Tarkos – mais um diálogo invisível com Ferreri) a peça ganha uma moldura quase litúrgica, como se um rito tribal conferisse ápices de humanidade a este colectivo.

A oralidade é uma pulsão humana primordial. E a boca uma parte do corpo tendencialmente ignorada pela dança. Conhecendo a propensão experimentalista a que Charmatz (França, 1973) nos habituou desde os anos 90 (vimos por cá A Bras le Corps, 1999, La Danseuse Malade, 2008 e Enfant, 2011), reconhece-se aqui mais uma das suas incursões nos domínios da “sub-coreografia”. O problema é que a proposta feita pouco evolui dramaturgicamente; e a aura da radicalidade já dificilmente encontra sustento no século XXI. O que se quer denunciar? Como subtrair a “experiência” ao risco da gratuitidade? A cadência quase performativa das palavras de Charmatz no texto de apresentação da peça prometia um manancial de possibilidades a que a peça só tangencialmente responde. Discernimos (a custo) relação difícil da dança com a alimentação, a greve de fome como protesto, os rituais de refeição em desaparecimento, as informações que mastigamos e os conflitos que digerimos, a cadeia alimentar e os seus resíduos… como engolimos a realidade?

São, sobretudo, o foco mental e a notável placidez com que os interpretes se entregam a uma proposta criativa incondescendente (a ponto de colarem a boca ao chão para devorar restos de papel) e os momentos onde uma comunhão quase ritualística convoca percepção da nossa condição biológica comum, a resgatar a peça.

Tal como na “Grande Farra”, a peça deixa em nós um rasto de perturbação e exaustão; e a pairar, a dúvida entre termos assistido a uma sátira um mundo contemporâneo que tudo engole (consome) até à autodestruição ou se não será a peça, em si mesma, mais uma emanação de uma civilização em decadência.

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