A Europa discutida à mesa

Yuck Factor, do colectivo Visões Úteis, explora o processo ligado à alimentação – desde a produção até ao momento em que comemos – para questionar os paradoxos associados à política europeia. Estreia-se esta quarta-feira no Teatro Carlos Alberto, no Porto.

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Yuck Factor, nova criação do Visões Úteis Marco Duarte
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Yuck Factor, nova criação do Visões Úteis Marco Duarte
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Yuck Factor, nova criação do Visões Úteis Susana Neves

Este ano, a companhia Visões Úteis andou a reflectir sobre questões da identidade colectiva, explorando as contradições que surgem sobretudo na forma como nos relacionamos com os outros. Evocamos valores humanistas, recheados de racionalidade, mas, na hora de agir, o que fazemos esbarra contra aquilo que acreditamos que nos define. São sobretudo estes paradoxos ligados à identidade que o grupo de teatro portuense tem tratado.

O primeiro momento dessa reflexão aconteceu em Maio, quando estrearam no Teatro Rivoli Trans/missão, uma criação em torno da identidade nacional – um pouco sobre aquela tendência de deixar a revolução para amanhã.

Agora, o Visões Úteis volta a trabalhar sobre as mesmas dúvidas e inquietações, desta vez focando a identidade europeia. Tudo isso é posto (literalmente) em cima da mesa em Yuck Factor, a nova criação da companhia de Ana Vitorino e Carlos Costa, que se estreia esta quarta-feira no Teatro Carlos Alberto, às 21h, onde ficará em cena até domingo.

Tudo começou a ser preparado há cerca de ano e meio, numa altura em que o debate mediático se centrava na Europa, concretamente nas consequências políticas e económicas de uma crise financeira onde sobressaía uma espécie de cisão entre países do Norte e países do Sul. Foi a partir desse contexto que Ana Vitorino e Carlos Costa – também eles protagonistas de Yuck Factor conceberam este espectáculo.

Inicialmente, seria sobre a fragmentação da Europa, sobretudo sobre a nossa relação com o outro, mas um “outro” europeu. Mas o texto foi evoluindo à medida que a narrativa mediática descrevia os acontecimentos reais e, no último ano, com a crise humanitária dos refugiados, a peça “ganhou outra carga”, porque surge “'outro’ ainda mais diferente”, explica Ana Vitorino. “Queríamos retratar como a repugnância interfere na forma como nos relacionamos com os outros”. E no caso da chegada dos refugiados, “a repugnância ainda vem com mais força”, realça a actriz e encenadora.

Foi então que descobriram um conceito que ilustrava tudo isso, yuck factor, que acabou por ser o título da peça. É definido como a “crença no instinto de repugnância”, e foi teorizado por Leon Kass, que escreveu mais ou menos isto: “A convicção de que se uma coisa nos enjoa é porque ela é efectivamente má ou perigosa”. “Percebemos que esta ideia está presente numa série de tomada de decisões, desde a forma como se legisla até reacções no nosso dia-a-dia. Achámos que era uma coisa muito presente. Por exemplo, quando alguém dizia que os alemães eram nazis, porque queriam dominar os países do Sul, ou quando chamava 'preguiçosos' aos gregos, que mereciam estar onde estavam”, explica Ana Vitorino.

“Esticámos este conceito para justificar a falta de tolerância, de compreensão e empatia para com os outros. Isso, para nós, é interessante”, continua. Foi a partir desse discurso "veiculado pelos media”, que o Visões Úteis criou este espectáculo sobre a retórica do preconceito e a maneira como esses clichés identitários influenciam algumas decisões numa Europa que se diz unida.

Para ilustrar tudo isto, Ana Vitorino e Carlos Costa focaram-se nos costumes associados à alimentação. A comida é o ponto central da peça: “A sua distribuição, o modo de servir e de consumir, as regras implícitas ou definidas por protocolo para estar à mesa com os outros servem de pretexto para falar dos impasses na construção de uma identidade plural, e da intolerância entre culturas”.

Em cena, Ana Vitorino, Carlos Costa, Cristóvão Carvalheiro e a actriz espanhola Ainhoa Hevia são uma equipa de catering que nos apresenta uma espécie de manual de boas práticas para se organizar um evento multicultural de sucesso. Se seguirmos o protocolo, teremos um evento de sucesso. Há sempre comida envolvida, mesmo quando não se está a falar de comida. Aliás, na verdade, não se está bem a falar de comida. Esta é apenas uma imagem para se falar de tudo o resto: “Sobre como olhamos para os outros, sobre como vamos ou não receber os outros, sobre respeitar ou furar as regras, sobre o nojo ou não ter nojo. Tem muito a ver com empatia”, explica Ana Vitorino.

“Há muita semelhança entre a política europeia e as regras de distribuição de comida na Europa”, diz Carlos Costa, ilustrando essa realidade com as apertadas regras que existem para que uma maçã seja considerada de facto uma maçã: “Tem de ter o tamanho certo, o peso certo”. E isso  acrescenta  serve também para levantar as mesmas questões em relação às pessoas: “O que é que uma pessoa tem de ter para ser, de facto, tratada como pessoa?"

São estes paradoxos que Yuck Factor atira para os espectadores, e a presença de uma actriz espanhola acaba por realçar isso. Ainhoa Hevia tem um papel ligeiramente diferente: “Há uma ligeira depreciação que impusemos nela. Parece que somos os quatro iguais, mas, como diria o Orwell, 'uns são mais iguais do que outros'. E ela é essa figura menos igual, pois é a figura estranha”, argumenta Ana Vitorino.

O assunto é controverso, por vezes desconfortante, mas há também momentos hilariantes. Aliás, o humor negro é a marca de Yuck Factor. "Gostamos de escrever coisas que nos fazem rir a propósito de assuntos sérios”, justificam os fundadores do Visões Úteis.

No Teatro Carlos Alberto, a mesa vai estar posta  para o debate.

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