Uma mulher a caminho de si mesma
É a primeira estreia absoluta do ano para o Teatro Nacional São João: Dos Mundos Interiores, de Luís Mestre, chega ao Mosteiro de São Bento da Vitória esta sexta-feira.
Há uma personagem que se procura, sozinha, sentada num banco à porta de uma qualquer festa que preferiu abandonar. Não sabemos em que dia se perdeu, de onde veio, o que faz ou como se chama – porque esta é uma viagem introspectiva, um atribulado caminho de regresso a si mesma.
Apesar de haver duas actrizes em cena em Dos Mundos Interiores (Tânia Dinis e Ana Vargas) – a primeira estreia absoluta do ano num dos palcos do Teatro Nacional São João (TNSJ), o Mosteiro de São Bento da Vitória –, a personagem deste novo texto de Luís Mestre é uma só, em diálogo com o seu íntimo, reavivando emoções passadas, desdobradas em experiências tanto espirituais como físicas. O amor, no centro do discurso, torna-se ao mesmo tempo fonte de liberdade e de prisão. A exposição da entrega deixa esta mulher vulnerável a qualquer pequeno gesto, e há o risco de que o vazio ocupe o lugar do encanto. É evocando as linhas de Tolstói no momento do suicídio de Anna Karenina que ela se refugia para justificar a inevitabilidade de um desfecho trágico: "De repente, a escuridão que cobria tudo para ela rompeu-se, e a vida surgiu-lhe por um instante com todas as suas luminosas alegrias passadas", escreve o escritor russo momentos antes de a sua personagem se atirar para as linhas do comboio.
“Este tom de abismo existe, tal como existiria numa personagem em perda da sua individualidade. Ela vai-se perdendo até ao fim do espectáculo, tenta encontrar-se mas não consegue. É como se fizéssemos uma viagem em espiral ao interior desta mulher”, revela Luís Mestre, autor e encenador da peça, que fundou o Teatro Novo Europa em 2004 para dar visibilidade a uma nova geração da dramaturgia portuguesa.
Nesta peça, o fim trágico do romance que inspirou Luís Mestre não se chega a concretizar – pelo contrário, o fim fica em aberto. Mas o encenador admite procurar a comoção da audiência. A "viagem visceral" da protagonista é um convite pessoal feito a cada espectador anónimo na plateia – de resto, tal como ele, a própria protagonista também se mantém anónima ao longo da peça.
“Hoje as pessoas têm menos capacidade de fazer uma viagem a solo: estar só, ler um livro...”, reflecte o dramaturgo. É por isso na solidão que esta personagem procura completar-se e desvendar-se, num processo que acabou por ser paralelo à própria experiência escrita do autor. A sua última peça em cena no TNSJ, Do Precipício Tempestuoso de Ricardo III, em 2013, era também sobre a viagem solitária de um homem ao seu passado. Mas este, diz, é o texto em que se reinventa como dramaturgo (estreou-se em 2008), concentrando-se agora numa busca "pela palavra certa". “Quando a peça se chama epitáfio não é só para a personagem, mas para a minha forma de escrever em termos de ritmo, dinâmica, personagens e relação com o público. Foi muito difícil esse embate porque eu estava a fugir à minha própria cristalização como autor."
Escrever para duas mulheres que afinal são uma só foi para Luís Mestre um desafio; a vida que as suas palavras ganham em palco é a sua superação. Os actores, diz, são afinal "o centro nevrálgico do teatro, como diz a personagem: o ponto onde tudo converge".
Texto editado por Inês Nadais