A energia da inquietação

Festa, alegria, violência, futuro, comprometimento, fragilidade. São as palavras e os significados que envolvem Artistas comprometidos? Talvez, a colectiva apresentada na Gulbenkian no âmbito do programa Próximo Futuro

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Teoria, peça de Eduardo T. Basualdo: a localização inusitada (parece rasar as cabeças dos visitantes) e a queda latente (um fio segura-a ao tecto) interpelam quem passa. Primeiro, o receio face à possibilidade de uma catástrofe, logo a seguir o encontro com uma presença surreal, fantasiosa, plena de ilusão: não é ferro ou granito o que a constitui, mas folha de alumínio Rui Gaudêncio

António Pinto Ribeiro atravessa, num passo rápido, a sala de exposições da Fundação Gulbenkian. Está cansado – “escapou” há minutos do calor da rua – mas visivelmente satisfeito e saúda os artistas que encontra pelo caminho, interrompendo-se aqui e ali para olhar a montagem final das obras. “Artistas comprometidos? Talvez”, a exposição que comissaria, no âmbito do programa Próximo Futuro, está quase pronta. A meio da sala, o artista moçambicano Celestino Mudaulane termina a sua pintura mural e ao fundo a instalação de Wum Botha parece concluída. Nas paredes, já se exibem as fotografias do franco-argelino Bruno Boudjelal, os estranhos e coloridos “retratos” do sul-africano Athi-Patra Ruga e a pintura do brasileiro Luiz Zerbini. No chão, algumas obras esperam a sua vez. Como já se tornou, presume-se, evidente, os artistas participantes nesta colectiva (ao todo são 21) não se subsumem a uma geografia. Há-os de diferentes continentes e países, o que denota uma coerência com os fins do programa Próximo Futuro e, neste, com a actividade de curadoria de António Pinto Ribeiro. Mas o que dizer do título? Que sentido tem a palavra “comprometidos”?

“Há aqui dois tipos de comprometimento”, diz o curador. “Um comprometimento com o legado artístico, com a arte, que considero profundo. E uma atitude que no meio das maiores vicissitudes, das maiores catástrofes, encontra espaço para a expressão de uma certa alegria, de uma ideia de festividade. Não se trata de uma regra, mas é substancial. É uma energia que os artistas canalizam para a expressão artística, para a criação das suas obras”. Alguns trabalhos tornam presente esse energia, Veja-se o tromp-l’oeil que espreita da pintura de Luiz Zerbini, a indeterminação colorida dos seres de Athi-Patra Ruga, as luzes e o movimento da instalação de Wum Botha. A cor e a diversidade de linguagens são aspectos que ressaltam e envolvem o visitante. E a par de pinturas, de esculturas e instalações, encontram-se filmes, pinturas murais, referências a cidades ou a lugares específicos (a costa do Norte de África, o Mediterrâneo, Maputo, as ruas de Joanesburgo), inclusive a outras artes (a BD). Como se articula toda esta diversidade, e o comprometimento que a atravessa, com a possibilidade de uma intervenção? “Nas conversas com os artistas, houve sempre um debate em torno do papel interventivo, quer da obra, quer do artista como cidadão. Que implicações surgem na produção contemporânea e na relação dessa produção com os cidadãos? As obras e actividades dos artistas desta exposição não são militantes ou panfletárias, mas partem de um programa individual, pessoal”.

Fragilizar a mediação

Algumas estratégias que ilustram a complexidade, bem como a singularidade, desses programas podem ser: evocar ou documentar um período negro da história de um país (é o que fazem o sul-africano Conrad Botes ou a guatemalteca Sandra Monterroso), confrontar a violência de uma sociedade (nas pinturas de Celestino Mudaulane, na proposta da artista brasileira Berna Reale) ou explorar narrativas da história política (Bouchra Khalili). Na maioria destes trabalhos, o que se evidencia não será um gesto de denúncia, menos ainda de activismo, mas uma inquietação provocada pelas condições sociais e políticas do real; inquietação que só se mostra, só emerge se transfigurada pela arte. Repare-se nas imagens de Bruno Boudjelal. Ao longe, parecem pinturas de paisagens e são paisagens o que vemos representado. Um olhar mais aproximado, permite descobrir outra coisa: são fotografias, tomadas, ofuscadas pela luz, da costa argelina e da costa da Europa do Sul que o artista fez durante uma série de viagens. A alusão às travessias do Mediterrâneo por jovens africanos que tentam chegar à Europa vai-se revelando. Escreve o artista no catálogo: “Virando as costas a África, diante das margens europeias de Espanha ou Itália, regressei aos locais onde embarcam estes migrantes clandestinos. Estas paisagens brancas fixam numa mesma fotografia o encandeamento da luz, o desaparecimento da paisagem e as construções da memória.”

Apesar da articulação entre temas próximos ou comuns, refira-se que grande parte dos artistas não se conhecia pessoalmente. “Não houve colaboração entre eles, mas existiu um processo de debate interno”, nota Pinto Ribeiro. “Houve conversas, leram-se textos, houve reflexão. Verificou-se um processo de partilha, com propostas e contra-propostas, trocas de imagens. E mostrei-lhes a história da exposição anterior, para terem uma perspectiva com que se pudessem relacionar”. O curador, embora participante, assumiu a fragilização da sua função, atitude que, no seu entender, modera a autoridade excessiva do mediador. Podemos intuir, na opção, uma crítica ao mundo da curadoria? “É hoje uma evidência o excesso de mediação entre os artistas, o público e as instituições. E isso tem uma razão de fundo que é grande diversidade e a ausência de cânones da arte contemporânea. Cabe muito do poder de selecção aos curadores. Mas o problema não são os curadores, e sim o excesso da sua influência e autoridade, que vai personificando um star-system”. A este problema, acrescem outros obstáculos que desvirtuam a produção artística: “Há muitas situações de promiscuidade entre curadores, responsáveis por colecções e críticos. E isso não é nada saudável para os artistas e as programações”.

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Eduardo T. Basualdo Rui Gaudêncio

Comprometimento com o futuro

Dos participantes em Artistas comprometidos? Talvez só se contam dois nomes portugueses: Pedro Barateiro e João Ferro Martins. Que conclusões se podem tirar desta parca representação? Que a inquietação que anima esta colectiva não é partilhada pela actual arte portuguesa? António Pinto Ribeiro admite que sim. “A responsabilidade não é, contudo, dos artistas. Eles estão inseridos num processo histórico onde o mercado e as galerias se lhes impõem, não permitindo outro tipo de orientações. Também não encontro essa inquietação na arte que se torna panfletária ou naïve. Há uma falta de comprometimento radical. O Pedro Barateiro e o João Ferro Marins, para mim, têm esse comprometimento com o futuro, com o devir, mas por razões que terão a ver com os limites de produção, tendem a fazer obras minimais, com escalas mais reduzidas”.

Uma escala reduzida é algo que não se encontra em Teoria, peça de Eduardo T. Basualdo, uma enorme rocha negra, suspensa sobre o foyer da Fundação. A sua localização inusitada (parece rasar as cabeças dos visitantes) e a sua queda latente (um fio segura-a ao tecto) interpelam quem passa. Primeiro, o receio face à possibilidade de uma catástrofe, logo a seguir o encontro com uma presença surreal, fantasiosa, plena de ilusão. Não é ferro ou granito o que a constitui, mas folha de alumínio. Entre a aparição violenta e a ironia, testemunha-se uma transfiguração semelhante à realizada pelas imagens de Bruno Boudjelal, com a diferença de que aqui é a relação entre os homens e os objectos, e menos entre os homens e os lugares, aquilo que o artista vem interrogar.

Regresse-se à sala principal. Acolhe filmes da autoria de Bouchra Khalili, de Miguel Jara, de Pedro Barateiro e Solon Ribeiro. Todos lidam com questões distintas, quanto muito contíguas: a performance, a montagem, a memória do cinema, a animação, a documentação. Em comum, sobressai um envolvimento com a cultura das imagens e os arquivos que ela vai construindo. Esse é também um aspecto relevante do projecto. Mas há outro que surge mais interpelador. A aparição da pintura mural, nas propostas de Conrad Botes, vindo da BD experimental, de Celestino Mudaulane (que tem apresentado desenhos e esculturas em edifícios devolutos de Maputo) e do mexicano Demián Flores, que retoma um “movimento” que marcou a história da arte do seu país. Pergunta “provocadora”: por que não levar estes trabalhos para o exterior, para o interior da cidade? “Isso seria um gesto de falsa rebeldia”, responde o curador. “Não faz sentido, neste contexto instalar e pintar um muro numa rua da cidade. Seria uma situação de extrema hipocrisia. Esta é uma exposição que decorre numa instituição. É mais transparente e honesto propor essas obras no interior da exposição, com os limites possíveis, do que ir para os subúrbios”. A presença ameaçadora de “Teoria”, do Eduardo T. Basualdo, sobre as nossas cabeças, no foyer da Fundação, parece dar razão ao curador. 

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