A diva que não verga

Give People What They Want será sempre o disco da tormenta de Sharon Jones, gravado entre a morte da mãe e a sua própria luta contra o cancro. Domingo recebemo-la em Lisboa e há que celebrá-la enquanto a temos por cá.

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PAUL MCGEIVER

A verdade é que isto faz parte da soul clássica: se na balança da vida de quem canta o peso das agruras não for pelo menos tão grande quanto o das alegrias, parece que a voz não consegue ser o fiel da periclitante condição humana que a música espelha. É um fardo que vem com o dom: os cantores soul sofrem. De amor, de falta de dinheiro, de vício – e também de doença.

Pelo que podia ter sido tudo muito diferente. Podíamos – por exemplo – não estar aqui a ter esta conversa. Não nos referimos a si, amigo que mantém o estranho hábito de comprar jornais em papel, antes a Sharon Jones, soul-woman de eleição cuja voz carrega as dores deste mundo mas também honra a imensa benesse que é estar vivo. 

Também não nos referimos à provação que foi a carreira desta mulher, descoberta tão tardiamente que ela própria quase não acreditou quando finalmente começou a lançar discos em seu nome, mas ao facto de ela estar do outro lado de uma sequência de linhas de cobre que transportam sinais sonoros amostrados e replicados milhares de quilómetros à frente, ou, mais propriamente, em Bruxelas, onde se encontrava há uns dias, pronta a pôr os belgas a suar, como certamente o fará este domingo na Aula Magna, em Lisboa. 

Não que ela conhecesse o seu paradeiro: quando lhe perguntámos onde estava teve de inquirir junto das irmãs que raio de lugar seria aquele. Por estes dias, a senhora Jones viaja sempre com as irmãs. “Elas estão aqui, vieram comigo em digressão. São elas que tomam conta de mim. Sem elas seria impossível." Impossível porque há uns meses a senhora Jones travou uma luta muito maior do que a sua rocambolesca carreira: se fosse boxe, diríamos que de um lado estava miss Jones, pesando muito menos do que o habitual, e do outro o leve e mortífero cancro. Mas não é boxe e o cancro não estava do outro lado – estava dentro da cantora de 58 anos. Que, como se a doença não fosse suficiente, tinha acabado de perder a mãe.

“Tudo seguiu o trajecto normal”, recorda Jones. "Juntámos 20 e tal canções, começámos a ensaiar e depois, na altura de gravar o álbum, a minha mãe morreu. O irmão de um dos meus músicos também morreu e o disco começou a ficar ensombrado. E mal o acabámos eu adoeci. Por mais que eu não queira, para mim este será sempre o disco da doença."

A voz de Jones a falar do período mais negro da sua vida contém simultaneamente tristeza, aquele reconforto de saber que o pior já passou e a raríssima qualidade de cada palavra soar absolutamente autêntica, como se não houvesse reflexão nas suas respostas, antes uma ligação directa entre o coração e a boca. Ela atrapalha-se, agradece a Deus, muda de assunto a meio das frases, enfim, está longe de ser um explicador de geometria a demonstrar a validade empírica do recorte da sombra de um cone.

“O meu corpo, quando passei pelo cancro, meu Deus, perdi tanto peso, eu não me reconhecia, não tinha força para nada, Deus sabe como eu estava, e nessa altura ver que os fãs ainda me querem, ler as mensagens dos fãs, receber o seu amor e carinho, isso deu-me uma vontade imensa de continuar. E agradeço aos meus fãs, do fundo do meu coração agradeço-lhes, filho, porque sem eles teria desistido. Porque isto, noite após noite, 13 noites seguidas de concertos e entrevistas sem descansar, isto é tudo parte de estar viva e só Deus sabe como eu estou feliz só por estar viva, Deus e as minhas irmãs, não é meninas?”. E ri-se. Deus sabe como é bom ouvir esta mulher rir-se, uma daquelas gargalhadas que abanam o nosso corpo, tamanha é a trepidação que a alegria que transporta provoca. Está-lhe no sangue, Sharon Jones não sabe ser de outra maneira, e isso volta a estar presente em Give People What They Want, o recente e magnífico “disco da doença”. Ironicamente, o anterior, lançado em 2010, chamava-se I Learned The Hard Way.

Os fãs de Sharon Jones são uma comunidade em constante crescimento: qualquer pessoa exposta à voz da senhora e ao vulcão em permanente erupção da sua banda-suporte, os Dap-Kings, fica viciada, ansiando por mais labaredas a saírem daquelas goelas, por mais chicotadas da secção rítmica.

Como é óbvio, tudo isto podia não ter sido assim: “Em miúda nunca imaginaria que um dia estaria numa banda de músicos brancos a tocar música soul. Quando conheci os Dap-Kings, aliás, a primeira coisa que perguntei foi o que é que estes garotos brancos sabiam de música soul. Mas eles são coleccionadores de discos, estão sempre a trazer-me discos antigos – e eu conheço as pessoas que fizeram esses discos e eles ficam todos excitados e pedem-me que conte histórias deles. Mas nunca imaginaria isto, não senhor."

Questão de sorte

Na década de 1970, Sharon Jones tentou marcar o seu território no universo funk e disco mas nunca passou da função de backing vocals. Estar lá atrás parecia o destino de uma mulher que 20 anos depois, sem um disco em seu nome, se confrontava com o facto de “ninguém querer soul”. “Talvez fosse uma reacção à pop dos anos 1980”, reflecte agora, “mas os miúdos só se interessavam pelo grunge”. Não tem grande explicação para o que lhe aconteceu: “As pessoas seguem modas. Umas vezes com razão, outras sem razão, mas se não são expostas ao teu trabalho não te podem apreciar. É uma questão de sorte."

A sorte de Jones foi ter sido descoberta pela malta da Daptone Records – uma “cambada de miúdos muito mais novos que sabem tudo sobre soul”, nas palavras da diva. Dap Dippin' with Sharon Jones & the Dap-Kings, o primeiro disco, de 2002, tornou-se de imediato objecto de um culto que não tem parado de aumentar: “Houve uma fase em que as pessoas se interessaram muito pela soul antiga, e eu, que estava a gravar pela primeira vez, soava à década de 1960. As pessoas nunca mais foram embora." “Agora é confuso perceber qual a moda que domina porque está tudo disponível”, diz Jones, que acredita que terá audiência “enquanto as pessoas gostarem de soul e funk”, como se fosse apenas uma emissária desses géneros.

Ela sabe a sorte quem tem: “Há pouco tempo vi umas imagens deles [os Dap-Kings] com a Amy [Winehouse] e chorei muito. É uma pena ela não estar aqui. Tanto talento, tanta dor, meu Deus. Sabes, filho, eu tive as minhas aventuras com drogas quando era nova e tive a sorte de ter gente ao meu lado que não me deixou cair, e a igreja para me erguer e para me fazer perceber que não era aquilo que eu queria”.

A fidelidade que a une aos Dap-Kings, acredita, é “uma benção dos céus”. “Já passaram tantos anos que às vezes subimos ao palco e nem sabemos o alinhamento, é o que nos apetece. Sempre que escrevemos canções corre bem porque nos conhecemos muito bem, sabemos de que é que cada um gosta. É como se eles tivessem nascido no mesmo sítio e no mesmo ano que eu."

Ainda assim, a vida "dura e exigente" de Sharon Jones não é um pacato passeio pelo paraíso. Diz receber “mais amor do que dinheiro”. “Cantei uma canção num disco do Michael Bublé”, conta, “e ganhei mais dinheiro nessa canção e na semana de concertos que demos do que no resto da vida”. O vil metal serviu para “comprar uma casa e um carro” para a família. “Ainda estou à espera de ter os meus 500 mil dólares no banco”, continua, meio em tom de gozo.

Pouco importa, na realidade. Ver “a morte tão perto” e sair dessa luta “com as qualidades intactas" é "a maior benção que se pode ter”. "A voz é um dom de Deus. Agradeço-Lhe ter-me dado este dom. E sei que Ele vai guiar-me até eu não poder mais. E eu vou continuar a lutar e cantar até não poder mais. Darei sempre tudo o que tenho”, garante, em final de conversa. Em troca, Sharon Jones só pede uma coisa: “Um bocadinho do vosso tempo, um bocadinho do vosso amor." Não há-de ser difícil. 

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