A dança hipnótica da Jibóia

Uma guitarra e um órgão Casio barato. Óscar Silva não precisa de nada mais para criar a música fascinante de Jibóia. Um português a perseguir transe oriental. Badlav, com Sequin, é o disco de estreia.

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Jibóia: Ana Miró (Sequin) e Óscar Silva VERA MARMELO

A cobra, como sabemos, muda regularmente de pele. A desta ainda vai na primeira pelagem. Tem colorido brilhante e vale a pena observá-la de perto. Chama-se Jibóia e é obra de Óscar Silva, habitante da Bobadela, 27 anos, que depois de algum tempo a tocar rockalhada bem riffada, visceral, em bandas como os I Had Plans, descobriu a música delirante, contagiante, do sírio Omar Souleyman, e seguiu na rota por ele aberta (da Síria à Turquia, da Turquia à Índia, voo demorado até ao Gana, e daí até ao Brasil tropicalista). Perfeccionista e obcecado pelo controlo de todos os passos que dá, seguiu sozinho.

Jibóia é Óscar Silva, uma guitarra de teor psicadélico bem medido (ora rodopiante, ora de bordão poderoso, reverberante) e um órgão Casio barato que se transforma em poderosa máquina hipnótica quando o som é processado por sabe-se lá quantos pedais. Encontramo-lo agora em Badlav, o primeiro álbum, quatro canções recriando em modo Jibóia o ciclo de criação e destruição da filosofia hindu. Nele, Óscar tem companhia. Ana Miró, ou seja Sequin, que se estreou este ano em longa-duração com Penélope, dá voz vibrante (em hindi) às quatro canções de Badlav. A pele da Jibóia reluz. Encadeados, hipnotizados, deixamo-nos conquistar. Dançar é preciso. Viajar é preciso.

No ano passado, ouvimos o homónimo EP de estreia e ficámos tão entusiasmados quanto intrigados. De onde veio isto? Que música é esta: guitarra faiscante a desenhar espirais no éter, electrónica primitiva criando uma cadência repetitiva, um ritmo em que as lições dadas pelo kraut alemão de Neu! ou Harmonia se cruzam com visões do Oriente. Música misteriosa mas festiva, música para inventar novas raves em Goa, em Sevilha ou na Bobadela. Badlav, produzido por Xinobi e Moullinex, é o passo em frente. “Estou muito contente com o meio-termo entre o cru do primeiro EP e o lado mais cristalino de agora”, diz Óscar Silva.

É um intuitivo. Não sabe ler música, gosta das distorções nascidas do aprender “de ouvido” (essas distorções são, muitas vezes, um grande apoio da criatividade). Ou seja, o fascínio por Omar Souleyman, pelas guitarras e pelos ritmos do Benim, pelas tablas indianas ou pela criatividade tropicalista não o levou a estudar profundamente como aquela música era feita. Levou-o a ouvir toda a música que pudesse, a incorporá-la, a fazer com que, quando a interpretasse ele mesmo, ela surgisse já transformada. Junte-se a isso uma necessidade de contenção perante a actual torrente interminável de informação: “Reduzi-me ao órgão Casio, aos pedais e a uma guitarra, sem o auxílio de computadores que te permitem o infinito, ou seja, fazeres tudo o que quiseres, para me impor limitações. Se não o fizesse, sei que me perderia."

O resultado é esta Jibóia que, num armazém açoriano, põe um público que nunca a vira a dançar com entusiasmo nada controlado às 4h da manhã (aconteceu em Maio, no festival Tremor), que repete o cenário às 7h da manhã no Ribatejo (aconteceu em Setembro, no Reverence Festival Valada), que terá feito o mesmo no festival sevilhano MonkeyWeek, por onde passou há duas semanas. “O que mais me interessa explorar é a ideia da repetição, o que vem, por exemplo, de música tribal africana em que se ouvem aqueles coros repetidos até à exaustão. O meu objectivo é que o meu transe seja o transe do público."
 

Desarrumar, arrumar

Jibóia não nasceu por acaso, mas tornou-se coisa séria num acaso feliz. Os Cangarra, formados pelo baterista Ricardo Martins e pelo guitarrista Cláudio Fernandes, tinham uma data marcada para Évora, mas faltava-lhes uma banda para assegurar a primeira parte do concerto. Lembraram-se da música que Óscar vinha criando em casa. Insistiram para que se lhes juntasse na viagem ao Alentejo e Óscar acedeu. Enquanto tocava, preocupavam-no as condições técnicas, que não eram as melhores – além disso, ele não estava tão certo quanto isso de que aquela música resultasse. No final, porém, começou a ver pessoas abordarem-no para lhe dizerem o quanto tinham gostado daquele som estranho, distante de tudo o que já tinham ouvido. “Se calhar tenho aqui qualquer coisa”, pensou.

Seguiram-se mais concertos e seguiu-se a chegada de Ana Miró. “É minha amiga há muito tempo e senti logo que gostava de fazer qualquer coisa com ela." Convidou-a a cantar Tuaregue, de Gal Costa, no Milhões de Festa, em Barcelos. Gravou com ela Uadjit, uma das canções do primeiro EP. E teve-a a tempo inteiro em Badlav, álbum de conceito nascido posteriormente à música. “Faço as coisas e depois é que lhes procuro um significado”, confessa. “Gosto de desarrumar tudo, de ter tudo à minha frente e depois perceber como arrumar tudo novamente." Tudo desarrumado, tinha quatro temas e cerca de 25 minutos de música. Divididos em dois grupos: “Um alegre, muito de festa, e outro mais negro, mais sinistro. A solução foi explorar essa dicotomia”, diz, utilizando o ciclo dos Yugas hindus, segundo o qual o universo é criado e destruído a cada 4,1 milhares de milhões de anos. Da luz do nascimento ao vazio da morte. “Gostei muito de o álbum ter esse elemento de degradação, de ir ficando cada vez mais sujo, mais negro."


Badlav é o fim da primeira pele de Jibóia. Vimo-la em 2013 acompanhada de dezenas de músicos em Barcelos, naquilo a que chamou a Jibóia Experience. E a ideia de colaboração, de chamar mais músicos a participar, está sempre presente (tocou recentemente com Ricardo Martins, por exemplo, no Sonic Blast, em Moledo do Minho). O próximo passo passará por aí. Antes disso, poderemos vê-lo no Stairway Club, em Cascais, a 14 de Novembro, ou no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, a 28 do mesmo mês

A primeira pele pode estar prestes a cair, mas temos ainda muito tempo para lhe pôr olhos (e ouvidos) em cima. Vale a pena. Já não é estranho. É só fascinante.

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