A cortiça fala? Fala sim, com máquinas, sons e narrativa a várias vozes

Memória Sonora da Cortiça é uma instalação que mostra diferentes camadas de uma indústria. E é também uma homenagem nunca antes feita. Abre este sábado na Casa da Cultura de Lourosa, na Feira.

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O que a cortiça diz quando a pomos a falar Sara Dias Oliveira, Nelson Garrido, Ana Almeida

Gonçalo Silva tem nove anos e sabe escolher rolhas. Aprendeu, na brincadeira, com a mãe e com a avó essa arte de separar por classes o produto extraído da cortiça. Sabe que é preciso olho aberto e tacto apurado. Gonçalo sente-se como peixe na água. O pai tem uma fábrica de cortiça e ao fim-de-semana costuma dar uma voltinha pela empresa. Mas hoje perceberá que a cortiça tem sons.

Gonçalo e os colegas do 4.º ano da EB1 de Casalmeão, em Lourosa, chegam à corticeira Matias & Neves, não muito distante da escola, para uma missão especial. Falta meia hora para o meio-dia e a fábrica está em plena laboração antes de soar o apito que avisa que é hora do almoço.

Os pequenos sabem o que têm de fazer. O microfone passa de mão em mão para captar sons de máquinas que irão construir uma instalação artística. Gonçalo descreve: “Ouvi sons, máquinas a trabalhar, a água a cair, os sons das máquinas e do empilhador”. A ideia de gravar o empilhador em andamento foi sua. Ficou satisfeito pelo contributo. E põe-se a pensar. “Não é bem a cortiça que faz barulho, as máquinas é que fazem barulho. As rolhas têm barulhos pequeninos ou maiores quando se mexe nelas”, explica.

As crianças percorrem a fábrica, param junto a algumas máquinas, ligam o gravador, colocam os auscultadores, passam pela caldeira que coze os fardos de cortiça que esperam no armazém. Beatriz Filipa, de nove anos, anda divertida com a aventura. “Estou a achar muita piada”, diz, admitindo que não sabia que barulhos a esperavam. “Gostei muito de ver as rolhas a cair.” A amiga Catarina Cadete ficou encantada com a água a correr na caldeira. De ouvidos bem abertos e gravador na mão, é hora de captar mais um som. “Não sabia que a cortiça tinha tantos sons assim”, confidencia.

Memória Sonora da Cortiça abre hoje ao público na Casa da Cultura de Lourosa, em Santa Maria da Feira. É uma instalação de grande intensidade, com oito canais e oito colunas de som, acompanhada de textos e imagens reunidos numa colagem em vídeo que é projectada na parede. Uma instalação que destapa camadas de uma indústria e mostra ângulos que fogem a um discurso mais oficial, menos complexo e mais económico, para mostrar o que, por vezes, não é visível. É uma homenagem nunca antes feita ao sector corticeiro português. Som a som constrói-se uma narrativa a várias vozes de uma indústria líder mundial.

Luís Costa, coordenador da Binaural/Nodar, de São Pedro do Sul – que este ano ganhou o Prémio Miguel Portas – entra em cena para orientar os miúdos nos registos dos sons. Com muito trabalho feito na área do mapeamento sonoro, Luís coordena os passos das crianças, mostra quais os botões a ligar e onde é que o microfone deve ser colocado. Antes dos registos sonoros, dinamizou sessões com alunos do 4.º ano do 1.º ciclo para que eles também pudessem partilhar as suas recordações de um sector tão enraizado na região, tudo para ajudar a desmontar a ideia de que só os mais velhos têm memórias.

Sem luta de classes
Santa Maria da Feira não é um concelho qualquer. É o maior transformador de cortiça do mundo – mais de metade das rolhas que circulam pelos cinco continentes são produzidas no seu território. Tem quase 500 indústrias corticeiras e emprega cerca de 6600 trabalhadores. Para a conhecer melhor, Luís Costa mergulhou na história desta indústria, percorreu fábricas, falou com proprietários e trabalhadores, pesquisou notícias nos jornais, resgatou documentos do passado e visitou o Museu de Santa Maria de Lamas, que tem uma sala dedicada à cortiça. Falou com patrões, ex-operários e dirigentes ligados ao sector.

Oito empresas, três das quais do Grupo Amorim, alunos de oito escolas primárias, o Museu de Lamas, a Associação Portuguesa da Cortiça (APCor) e o Cincork – Centro de Formação Profissional da Indústria de Cortiça, acompanharam este percurso e o gravador encheu-se com mais de 20 horas de sons e entrevistas.

“É uma das histórias mais bonitas da indústria portuguesa que vai da microempresa de garagem à empresa de escala mundial, que cruza classes sociais, o passado, o presente e o futuro”, diz Luís Costa. É uma indústria que tem memórias, tem inovação, tem histórias para contar, acrescenta. “Registamos o som que hoje está a acontecer, a memória que hoje construímos para amanhã.”
O coordenador do projecto impressionou-se com o que viu: “Esta indústria é um caso de estudo, é quase uma lição.” Uma indústria, mostra-nos a sua história, que nasceu num meio rural e que se afirmou no mundo; que tem várias classes sociais, mas que parece imune à luta de classes; que passa de geração para geração e em que o assalariado de hoje pode ser empresário amanhã. “Patrões e empregados vêm do mesmo substracto.”

Luís Costa teve oportunidade de captar o som da antiga caldeira da corticeira AJA Marques, em Santa Maria de Lamas, uma relíquia que já não tem uso e que no passado funcionava a lenha que aquecia a água onde a cortiça era cozida antes de ser moldada. O gravador é ligado mais uma vez. “A instalação também evidencia aspectos que podem ser esquecidos”, diz, acrescentando que, depois de tanta pesquisa, não percebe ainda por que razão não existe uma associação de ex-trabalhadores da cortiça.
Memória Sonora da Cortiça é um dos projectos do Imaginarius 365, secção do Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira que valoriza a vertente formativa e estende a programação ao longo do ano. O repto foi lançado à Binaural/Nodar que, conhecendo tão bem o mapeamento sonoro, abraçou a ideia. “Lançámos o desafio de mapear o imaterial do processo de transformação da cortiça”, revela Gil Ferreira, vereador da Cultura da Câmara da Feira. Desafio aceite, surge a proposta de envolver a comunidade escolar no processo. Agora que está concretizado, pode dizer-se que o projecto acabou por ganhar um cunho territorial, mostrando a indústria emblemática de uma região, e um cariz social por todos os actores e instituições que envolveu.

“Trata-se de uma instalação extremamente conceptual e que levará as pessoas do concelho da Feira a associarem essas memórias às suas vivências e que despertará sentimentos diversos em quem nos visita”, sublinha o vereador.

A instalação estará na Casa da Cultura de Lourosa até 14 de Dezembro. No início de 2015 muda-se para o Museu de Santa Maria de Lamas e poucos meses depois passará para o matadouro municipal, edifício que a autarquia está a reabilitar para reabrir como um pólo de criação artística e cultural.

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