A conversa do poema e da vida

Armando Silva Carvalho regressa com a novidade de quem tem na escrita um dos caminhos de maior solidão, pelo radicalismo da sua experiência do corpo, do ser humano, de deus e do mundo.

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Armando Silva Carvalho ergue de novo a sua língua a realizações de sistemática força rítmica e de uma pulsão metafórica intensa mas sempre medida

A Sombra do Mar é um livro, sob muitos aspectos, diferente de Anthero Areia e Água (Assírio & Alvim, 2010) e De Amore (Assírio & Alvim, 2012), os dois anteriores títulos de Armando Silva Carvalho. Onde este último constituía um díptico que desdobrava duas declinações do tema amoroso, ambas razoavelmente discerníveis nas suas escolhas e realizações; e onde a anterior colectânea fixava muita da sua realização em Santo Antero (cunhagem de Eça); A Sombra do Mar dissemina motivos e tensões, tornando mais escarpada a sua subida, e mais desabrigado o caminho.

Há, por certo, referências mais do que uma vez revisitadas, como Vieira, Cesário, ou Pessoa – presenças, aliás, antigas na poesia de Armando Silva Carvalho –, mas a nota dominante será, talvez, a um tempo mais fugidia e menos imputável a apenas um nó. O tempo, enquanto gerador de vida e encaminhador da morte, a sombra da doença e a ameaça da decrepitude, o esteio da dignidade, mas também o sempre irónico desafiar dela. Eis algumas das sementes que rebentam nos versos deste livro. Na sua mais recente produção publicada, Armando Silva Carvalho ergue de novo a sua língua a realizações de sistemática força rítmica e de uma pulsão metafórica intensa mas sempre medida. Como postulou Joana Matos Frias (num dos mais lúcidos ensaios dedicados ao autor de Alexandre Bissexto), em Armando Silva Carvalho, “a metáfora é um efeito, não um facto”, o que desconvoca toda e qualquer liturgia, ou sequer solenidade, que o uso reiterado (luminosamente reinventado) deste tropo poderia implicar. Porque é ao mecanismo implacável do poema, à sua motorização de sentidos e de associações, que o embate metafórico importa. Não à manutenção e amparo de um legado estritamente do estilo. O facto de ser Armando Silva Carvalho um dos mais consumados cultores desta estratégia retórica apenas nos deve fazer perceber na sua poesia uma desembocadura discreta, mas na qual confluem esforços autorais onde se digladiam, de forma soberana, ascese e fausto. A luminescência imagética desta poesia contrasta, nestas páginas, com a irrisão, mas sobretudo com o espírito de dúvida e de inquirição permanentes, que desfazem qualquer laivo de solenidade.

As várias encarnações do elemento aquático (elemento subjacente ao “mar” do título), no poema precisamente chamado A Água, correspondem a tantos outros ciclos de sentido – “água decepada”, “água criteriosa e diária”, “água doméstica” (p.9). Incidências que se articulam em regime de contiguidade – “concha” –, mas também por desvios, ampliações, conflitos semânticos, noutros desenvolvimentos do poema – “luxos vulcânicos”, “um rancor que se solta da prosa/ e da sanita”. Talvez não seja curial ver nestas propostas, e noutras que parecem percorrer trilho semelhante – “Como rodilhas de som./ Como sacos de lixo. Ou então, e simplesmente,/ de merda.” (p.14) –, um impulso apenas derrisório. Antes uma espécie de assentimento tácito ao diagnóstico arrasador (e autocrítico) de Cioran: “os escritores escrevem livros de mais”. Por esse motivo, não existe qualquer humorismo (ou só muito subsumido) em fechar um poema com estes versos: “Tu ainda não reparaste,/ mas a casa de banho é agora um lago.” Já não pode tratar-se de humor, mas apenas de forçar a entrada. É o mundo, na sua impiedade profana, que invade, inunda estas paragens.

O que vive é enunciado, de forma inconfundível, nestes poemas, que são, frequentes vezes, uma biologia prodigiosamente escandida. Os órgãos, os segmentos do corpo e do seu raio de acção e reflexão, revivem em versos que sabem auscultar o que é mais silencioso, porque é a voz oculta do humano. Um poema como “Contramão”, por exemplo, pode entender-se como um atlas anatómico que não se fundasse exclusivamente no corpo, mas que o conduzisse numa explicação tentada do que está para lá dele – “Às vezes o poema espreita dentro do corpo/ e desconfia,/ vê os anos trocados, a língua muito grossa e carregada,/ o coração vadio e corrompido, as digestões nervosas,/ os pulmões sem espuma, lento o respirar,/ apressado o cio.” (p.28) Não se trata, claramente, de uma viagem guiada pela corporalidade, nem pelo ameaço de ruína que a turba; antes o ingresso numa das inúmeras moradas do coração a pulsar entre vida e morte. Morte que (não menos vezes presente na poesia de Armando Silva Carvalho) é uma forma de pôr os ouvidos sobre o batimento das coisas terríveis e de retransmiti-las ao poema – “Se pudesse eu até de mim me afastava./ O que não deve faltar muito,/ segundo as minhas contas.” (p.60). Não são, afinal, os poemas “discípulos da morte” (p.45)?

O poeta parece, em certos passos, alguém a desfazer-se do excesso de bagagem. Daí que a sua despretensão seja tão real e adquira uma força que vai ganhando no conflito com os juízos e pré-juízos que se pudessem tecer. Por isso estes poemas estão de tal forma desinteressados da pose e da legenda. Tal como num poema Yeats falava do “imenso ferro-velho que é o coração”, Armando Silva Carvalho escreve que “a vida é o entulho” (p.21). Talvez por esse motivo sejamos testemunhas de uma espécie de alquimia inversa, que, à falta do ouro, reverte ao chumbo. Ou seja, do esplendor ao escuro, é um percurso mimético da história da humanidade e do homem como indivíduo. Uma réplica, no poema, de um caminho da luz para a extinção – “Mas já não existe o ouro, o fogo ao vivo, a expansão do sagrado./ Inclemente é o dia, a hora de chumbo, o sono,/ a sobrecarga dum silêncio/ de morte.” (p.67) Não é só o decréscimo métrico, através do qual o verso longo dá lugar ao breve, mas também o manejo da imagem, a colocação lexical, o bafejo do ritmo – isso que faz do poema aquilo que ele é. Tudo arde na sua própria fornalha, enfim. O poema constrói-se, um mundo dentro do mundo, sem deixar de representar esse espaço sideral que, apesar de tudo, está sempre além e aquém dos versos – “Quero avançar no poema mas falta-me agora o real/ mesmo imaginado” (p.76). Mas a esse vasto desconhecido que é o mundo, e ao “corpo essa estéril mania” (p.93), a poesia de Armando Silva Carvalho responde com um poder de escrita e de criação que o tornam um dos mais sozinhos dos poetas portugueses. No sentido em que a sua escrita é, na mais forte acepção possível, assunto seu. O poema Vésperas é quase uma (involuntária) demonstração disso mesmo. Na sua experiência deíctica, em que o quadrante pessoal assume a vanguarda, ele produz uma homenagem a um outro poeta (Eugénio de Andrade), mas, sobretudo, é responsável por aquilo que poderíamos chamar, invertendo um título de Wordsworth Intimações de Mortalidade – “A idade traz-me as metáforas do perigo/ e também as suas regras/ no desastre./ (…) Mas o meu tempo é cada vez mais frágil/ e entre o vento e a chuva uma pequena luz parece/ que germina.” (p.39)

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