A chuva ou mais elementos

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Pode até parecer estranho que o mais conseguido dos contos deste livro seja exactamente o último e o mais deslocado de um conjunto em formato de viagem que parte de Buenos Aires para terminar no Mussulo.

É o mais deslocado porque o seu tom é nitidamente autobiográfico, num estilo mais entrecortado, procurando a fluidez infantil da rememoração de um episódio de infância. Tem a força das evocações, a capacidade de construir com o pouco que sabe o narrador — Ondjaki criança perguntando-se porque quatro homens armados levaram a mãe num bote de borracha num 31 de Dezembro dos anos 1970 — um conto de entrelinhas, povoado de interrogantes, onde o secundário do bife frito, da barriga do vizinho, do fumar do pai, da garrafa de champanhe, tomam o lugar do essencial: a mãe ausente. O concreto, o tangível a jogar-se no centro da imagem ocupando o que lá falta.
Sonhos Azuis Pelas Esquinas

 toma o seu nome a um verso da poeta angolana Ana Paula Tavares, cujo poema (retirado de 

Como Veias Finas na Terra

, editado em 2010 pela Caminho) serve também com outros versos para a divisão do livro em quatro partes: 

para onde eu vou

ferve a luz

sonhos azuis

guardamos o lugar

. Ao todo são 20 pequenos contos, em que se vai do fantástico até à prosa poética, passando pelo realismo de contornos fantasiosos, sempre numa espécie de anti-guia de viagem, onde as cidades e os lugares são menos importantes do que aquilo que no escritor provocam: “Mas, é sabido: há sinais inconfundíveis. Há factos que nos encontram. No mar ou no deserto. Na escuridão ou na maresia.”

Apesar de os títulos poderem levar ao engano por serem todos de lugares, rapidamente o leitor percebe que Ondjaki não é escritor de viagens; interessam-lhe, sobretudo, porque fazem sair do baú outras histórias que este lá tinha guardadas. As cidades são aquelas, podiam ser outras: talvez o conto Buenos Aires esteja carregado de Borges mas Borges podia transbordar noutra cidade — em Macau escreve: “De peito nu, quase pude sentir a sensação de que aquele lugar não era aquele mas outro.” Talvez porque a única paisagem onde a escrita de Ondjaki (ainda) se sente realmente bem, onde consegue possuir contornos definidos e traços carregados, parece ser a de Angola ou, melhor, a da Luanda dos seus anos de infância e adolescência, antes de vir estudar para Lisboa.

Ondjaki mostra nítida preferência pelas perguntas deixadas sem resposta, pelas narrativas que são um entretempo — que começam e terminam ali, mas podiam começar ou terminar antes ou depois. Pelos alçapões que a visão de alguém por trás de uma cortina abre e por onde se esgueira a prosa. E vai deixando cartas e embrulhos por abrir, escancarando portas que dão para labirintos, com homens que perderam o passado, que pagam contas com poemas duros; pessoas com interiores azuis. E com tudo isso continua a chover — chove muito nos livros de Ondjaki. Há mesmo um conto infantil que também acaba de sair em Portugal, Ombela — a Estória das Chuvas, onde o escritor angolano inventa o mito do nascimento da deusa Ombela (chuva em umbundo, uma das línguas nacionais angolanas), cujas lágrimas criaram a chuva, o lago e os mares. EmSonhos Azuis Pelas Esquinas escreve: “chove sobre mim. os meus dedos respiram. os meus olhos celebram a chuva numa alegria seca” ou “Olhei o céu. Limpo./ Desejei que chovesse. Pedi a uma das minhas mãos que se inquietasse devagarinho. Sem saber, eu dançava um nome para mim.// E então choveu.”

A chuva é apenas uma das marcas deste livro que é mais uma camada com que se constrói a obra de Ondjaki. Talvez, para um leitor habitual do escritor, este livro de contos não surpreenda e só solidifique. Porém, é possível ver nele pistas de que Ondjaki estará a preparar um salto sólido para outras geografias, largando a “sua” Angola para fazer mundo. É esperar para ver. 

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