A casa nova de Mónica Calle é um recomeço

Finalizando a sua fuga do Cais do Sodré, Mónica Calle abre as portas da sua Casa Conveniente na Zona J. A Boa Alma, com texto de Luís Mário Lopes e música de JP Simões, é um espectáculo assombrado por Brecht e pela deriva da actriz e encenadora.

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Bruno Simão
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Foram três anos para Mónica Calle chegar de Heiner Müller até Bertolt Brecht. Os mesmos três anos que levou a traçar um percurso do Cais do Sodré para a Zona J, em Chelas.

 As duas ideias de deslocação unidas, de um autor para outro, de uma área da cidade de Lisboa para outra, coincidem na criação de A Boa Alma. Ao invés de Hansel e Gretel a largarem migalhas de pão para poderem recuperar o caminho inverso, Mónica Calle delineou uma viagem de espectáculos, que podiam ser seguidos até à nova localização da sua Casa Conveniente, mas para não mais voltar atrás. Por ora, a sua nova casa em Chelas é ainda um lugar inóspito, com paredes a serem derrubadas no intervalo dos ensaios, um frio de gelar os ossos a atravessar divisões decoradas apenas por escombros e vista para a rua mediada por uma rede azul presa a andaimes que engana a chegada da noite. E é aqui, ao ritmo de cada nova peça, que Mónica Calle nos propõe acompanhar o seu recomeço, numa nova Casa Conveniente. A obra a que aqui assistiremos terá duplo sentido – artística e de requalificação do espaço.

 “Não é solitário”, diz a actriz e encenadora sobre este reinício. “Podia ter recomeçado tudo sozinha, continuado o caminho de uma outra forma e feito outras escolhas. Mas escolhi assim. Não quer dizer que às vezes não tenha vontade de fugir, sabendo da dureza e de todo o imenso esforço que vai implicar vir para aqui, todo este recomeço aos 48 anos, quando estou na meia-idade. Vou começar mais uma vez ao frio, no entulho, sem luz, sem água, tudo dificílimo. Mas continua a fazer sentido. E, portanto, continuo a acreditar.”

Foi precisamente por acreditar na sua relação e das suas propostas artísticas com o lugar em que se encontra que Mónica Calle planeou a fuga do Cais do Sodré. Quando ali abriu a Casa Conveniente, em 1991, o cenário era ainda extensão de uma marginalidade portuária a pulsar na vida lisboeta, paredes-meias com a prostituição e todo um ambiente nocturno bas-fond. A transformação profunda da área nos últimos anos, engolida pelo centro da cidade e feita escoadouro do Bairro Alto, fez da Casa Conveniente uma ilha desconexa e desligada da nova identidade. Ao juntar a este desconforto um trabalho continuado de formação de actores junto da população prisional de Vale de Judeus, Mónica Calle sentiu que se dava um corte definitivo e foi fazendo a sua própria deriva afectiva em direcção ao Bairro do Condado (Zona J), ao mesmo tempo que mergulhava num ciclo dedicado ao dramaturgo alemão Heiner Müller.

Através de Müller, Mónica chegou então a Brecht. Mas quis fazê-lo pelo filtro da escrita de Luís Mário Lopes. Foi a ele que encomendou uma reapropriação de A Alma Boa de Setsuan, alimentada tanto pelo texto original de Brecht quanto pelo seu universo pessoal e pela sua migração iminente. Depois, estendendo o mapa da cidade, imaginou uma cartografia que sugerisse um trajecto, ainda que errante, que documentasse e integrasse a mudança. O autor acabou então por autonomizar fragmentos das nove partes que iriam compor A Boa Alma e repensou-os à luz de Os Sete Pecados Mortais dos Pequenos Burgueses, também de Brecht, num espectáculo partido em sete apresentações (do Teatro da Politécnica e da Latoaria, à Companhia Olga Roriz e ao DNA do Teatro Praga) acontecidos em Dezembro. Foi uma espécie de dramaturgia do abandono do Cais do Sodré, um limpar os vestígios para entrar em Chelas já pela mão de Brecht, com um vazio previamente preenchido. “Quando a Mónica me falou nas sete apresentações e em usar partes do texto para também criarem um caminho textual”, lembra Luís Mário Lopes, “isso encaixava no formato em que tinha estruturado o texto. Foi uma experiência interessante e bonita de ver até que ponto uma só parte resistia num outro espectáculo. Levámos ao extremo a ideia do teatro épico do Brecht – que achava possível tirar alguns fragmentos e a peça resistir na mesma.”

Mónica, Calle, Basílio

A Boa Alma apresenta agora o texto total, trabalhado por Luís Mário Lopes ao mesmo tempo que o cantautor JP Simões se servia do mote brechtiano para criar nove temas que servem de separadores entre os vários capítulos de uma narrativa assombrada pela escrita de Brecht e pelo mundo de Calle. Em
A Boa Alma de Setsuan, três deuses descem à Terra à procura de uma alma boa, dando a busca por terminada quando encontram a prostituta Chen Tê, que lhes dá guarida. Chen Tê muda depois de vida, abrindo uma tabacaria. “O jogo que o Brecht faz e que também quis fazer”, analisa Luís Mário, “é pensar como nos pensamos ou nos recriamos, às vezes pela dificuldade que sentimos em existirmos em sociedade e como faríamos se fôssemos amorais ou limitados pela moral em que nos encontramos mergulhados.” Em vez de Chen Tê, agora a protagonista chama-se Mónica, vinda da prostituição e das ruas próximas dos caminhos-de-ferro (alusão acidental ao Cais do Sodré, confessa) e muda de vida ao deslocar-se para um sítio novo. Esse sítio, inevitavelmente, formou-se na cabeça do autor com as imagens e o mapa da Zona J, só desbloqueando a escrita de A Boa Alma quando conseguiu introduzir algum artifício no texto.

Só que A Boa Alma, artificiosa que possa tentadoramente ser, funciona em permanência como uma investigação disso que é ser bom ou fazer o bem e de uma questão primordial para Mónica Calle: “Como posso continuar a ajudar os outros ajudando-me a mim”. A resposta é dada pela implicação. “O texto permite uma colagem muito grande a mim”, confirma a actriz e encenadora. As personagens centrais, aliás, tomam os nomes constantes do seu bilhete de identidade – Mónica, Calle, Basílio. “Só que há muitas coisas que não têm a ver só comigo, mas com as histórias de todos nós, do nosso trabalho, da Casa Conveniente. Há aqui uma convocação em que todos nos podemos encontrar e há também um lado secreto que é uma maneira de poder existir numa tentativa de plenitude. Não gosto da ideia da biografia, apesar de estar lá totalmente.” Estar totalmente parte também da lógica comunitária e emocional que Calle coloca no que faz. As paredes são deitadas abaixo por gente da construção civil pescada ali ao lado, as cadeiras para o público são emprestadas pelos vizinhos, a fábrica de bolos do texto foi extraída realmente das imediações. E em cada esquina do texto, ludibriando-nos com os ângulos e as sombras que usa na sua circulação pelo espaço, estará sempre Mónica Calle. No ponto frágil e inicial da sua reconstrução.

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