A casa assombrada

Visita ou Memória e Confissões é o filme inédito que Manoel de Oliveira realizou em 1982, e que decidiu só mostrar publicamente após a sua morte. Chegou agora a ocasião de ver este filme belíssimo, que contém alguns dos momentos mais fulgurantes da sua obra.

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Maria Isabel Carvalhais foi uma figura central na vida e na obra de Manoel de Oliveira DR
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Cartaz do filme DR
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Visita ou Memórias e Confissões DR

Trinta e três anos depois de ter ficado concluído, logo a seguir a Francisca, torna-se enfim público o “filme póstumo” de Manoel de Oliveira, o filme que ele fez com o propósito expresso de só ser mostrado depois da sua morte. A estreia acontecerá esta segunda-feira, no Porto, e no dia seguinte, em Lisboa.

Muito provavelmente, nem o próprio Oliveira – que na época tinha 73 anos – imaginaria que seria preciso tanto tempo para que se cumprisse a condição essencial da visibilidade de Visita ou Memórias e Confissões (1982). Que tinha ainda pela frente tanta vida e tanta obra, sendo aliás mencionados no filme, pelo próprio Oliveira, alguns projectos que só anos mais tarde ele pôde realizar, como Non ou a Vã Glória de Mandar  (1990) e O Estranho Caso de Angélica (2010).

Também por isso, por todo este tempo que transcorreu, a aura lendária de Visita foi crescendo, com a ajuda dos sussurros de quem esteve presente nas raríssimas vezes em que o filme foi publicamente mostrado – como aconteceu na Cinemateca, em 1993, numa ocasião em que João Bénard da Costa convenceu o cineasta a exibir o filme numa sessão semi-privada, com uma assistência composta maioritariamente por convidados de Manoel de Oliveira.

É melhor começar por dizer, para que não fiquem dúvidas, que se trata de uma obra maior, que não vai viver na obra de Oliveira nem como simples posfácio nem como curiosidade post-mortem. É um filme belíssimo, que contém alguns momentos tão fulgurantes como os mais fulgurantes momentos da sua obra conhecida até agora. Toda a sequência inicial, por exemplo. A câmara imóvel perante um jardim cheio de árvores, esperando pacientemente que a voz off de Oliveira – como a de Godard no Desprezo, ou a de Welles nos Ambersons  debite um genérico “falado” com menção a todos os principais colaboradores. Depois começa finalmente a avançar, em sucessivos movimentos de câmara através do jardim e das árvores, enquanto o som off é tomado pelas vozes de um casal (Diogo Dória e Teresa Madruga, dizendo um texto escrito por Agustina Bessa-Luís), que regressa a uma casa que lhes é ao mesmo tempo muito familiar e muito estranha. De árvore em árvore, a câmara acabará por se fixar numa magnólia e na sua única flor – só então vem o primeiro corte, para um close up à dita flor. E só depois se chegará, finalmente, à casa, à casa da Rua Vilarinha, onde Oliveira viveu durante quarenta anos e por esta altura teve que vender, como diz o próprio no filme, “para pagar dívidas”. 

É uma abertura de uma beleza avassaladora, na sua espécie de hesitação, ou de avanço retardado, imediatamente pondo em cena a relação, simultaneamente pudica e ousada, de Manoel de Oliveira com o espaço da sua intimidade.

Um filme de árvores
Oliveira imortalizou muitas árvores na sua obra – aquele travelling no Non, por exemplo –, mas talvez não tenha nenhum “filme de árvores” como este. Até num breve apontamento com miúdos a brincarem num jardim eles são vistos a dançar em torno de uma pequena árvore. A associação, um pouco mais que simbólica, entre as árvores e a casa, é clara: uma e outra coisa estão ligadas ao chão, vêm dele, estão fixas nele, as raízes são como os alicerces, e de “raízes” e de “alicerces”, no fundo, é do que este filme fala.

O realizador, na sua primeira intervenção no filme, avisa que se o cinema foi sempre a sua grande paixão, outros dois assuntos colheram a sua especial predilecção: a “agricultura” e “as coisas da arquitectura”. E se “as coisas da arquitectura” aparecem em pleno no modo genial como a câmara de Oliveira percorre os quartos e os corredores da sua casa, filmada vazia mas cheia de traços de uma existência humana concreta (como, momento sublime, no plano em que, por obra e graça daqueles “efeitos especiais” arcaicos que Oliveira sempre cultivou, um cinzeiro com um resto de cigarro se move sozinho no tampo de uma mesa), a “agricultura”, ou a “cultura da terra” num sentido lato, tem pelo menos ainda outro momento sumamente significativo: o apontamento com a sua mulher, Dona Maria Isabel, cuidando das dálias no jardim, enquanto fala para a câmara, como numa entrevista (as perguntas vêm de fora de campo), sobre “a vida com Manoel de Oliveira”, em planos inacreditavelmente floridos e coloridos.

No seu mais “confessional”, Visita é também isto, um filme de Oliveira sobre a sua família, sobre os pais e os irmãos, sobre a presença constante de Dona Maria Isabel, sobre os seus filhos e os seus netos, apresentados pelo realizador a partir das fotografias expostas na casa. “Expostas”: é bem o termo, e se uma casa é sempre o “museu” de quem lá vive, este filme é que é mesmo a “casa-museu” de Manoel de Oliveira.

Que conta, efectivamente, alguns momentos decisivos da sua história pessoal e das suas raízes familiares, em pequenos apontamentos frequentemente dados como “filmes no filme”, “projectados” pelo próprio Oliveira numa máquina doméstica, e seguindo todos os rituais da projecção (maravilhosa a cena em que Oliveira vai fechar as cortinas e depois, terminado o “filme no filme”, as vai voltar a abrir).

Outros, eventualmente menos “decisivos” no grande contexto das coisas, são dados como um sonho mau, uma cicatriz na memória: é o caso da reconstituição (é o único momento do filme em que Oliveira ensaia a reconstituição ficcional, embora heterodoxa e nada óbvia) dos acontecimentos de quando foi detido pela Pide, no princípio dos anos 60, e trazido para Lisboa onde ficou durante uns dias nos calabouços da polícia política (e, num “abismo” tipicamente oliveiriano, enquanto a voz off rememoria o facto de ter encontrado Urbano Tavares Rodrigues também detido pela Pide, o próprio Urbano cruza o plano, cúmplice do “sonho mau” de Oliveira).

Tudo se conclui de uma forma que, agora, tão pouco tempo depois da morte do cineasta acontecida na passado dia 2 de Abril , é impossível ver sem uma extrema comoção. Uma montagem fotográfica de imagens do próprio Oliveira, às arrecuas no tempo, cada vez mais jovem, uma espécie de “viagem ao princípio do mundo”, ou pelo menos até à infância e ao nascimento, para depois ficarmos, sempre com o ruido off de um projector de cinema (ruído, aliás, recorrente ao longo do filme), com um ecrã totalmente branco.

Mais do que uma figuração metafórica do (seu) desaparecimento físico, essa sequência inicial opera, ou traduz, uma passagem: Oliveira a transformar-se no cinema, o homem a fundir-se com a sua obra. É esse o sentido último com que saímos da sala de cinema finda a projecção: Manoel de Oliveira, 1908-2015, um dos maiores realizadores da História, não morreu, tornou-se a sua obra, e é nela, no cinema, que doravante o encontraremos. Como Godard disse de Mozart, “for ever Manoel”.

Visita ou Memórias e Confissões tem esta segunda-feira a sua estreia pública mundial no Porto, no Teatro Rivoli, em duas sessões, às 18h30 e 21h30, de entrada livre a ocasião servirá também para a Câmara do Porto homenagear uma vez mais o realizador, depois de ter decidido atribuir o seu nome ao grande auditório do teatro municipal. Terça-feira, o filme será exibido na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, às 21h45 e às 23h15. Está também confirmada a passagem de Visita ou Memórias e Confissões no próximo Festival de Cinema de Cannes, na secção dedicada aos Clássicos.

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