A caixa de ressonância do passado

É 2014 a rever o passado, ou é o passado a escrever 2014? No Festival de Avignon são vários os exemplos de um teatro que tem medo de matar a herança e, por isso, faz figura de bom aluno: aplicado mas pouco apaixonante.

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Em O Príncipe de Hamburgo, Giorgio Barberio Corsetti constrói uma mise-en-abîme AFP/BORIS HORVAT

Há algo de profundamente comovente nesta espécie de canonização do passado na qual se tornou a edição 2014 do Festival de Avignon. No livro de aforismos sobre o teatro Les mille et une définitions du théâtre (Actes Sud, 2013), o seu actual director, Olivier Py, escreve mesmo que “o teatro trata o tempo por tu”. Edição de gestos simbólicos e de memórias, mais do que uma edição de regressos, pouquíssimos, porque nessa ausência se joga o corte e a ruptura com dez anos que transformam Avignon no epicentro do futuro do teatro.

Edição, por isso, ansiosamente à espera de uma reconstrução a partir das suas próprias ruínas.

Três gestos marcam esta perspectiva sobre o passado, como se Olivier Py procurasse inscrever-se na própria história do festival, num misto de bênção e abandono. Gesto primeiro, a abertura do festival com O Príncipe de Hamburgo, de Kleist, encenação de Giorgio Barberio Corsetti, na mesma Cour d’Honneur onde, há 63 anos, Jean Vilar, o fundador do festival, impôs para sempre a imagem da camisa branca de um idealista, interpretado por Gérard Philippe. Gesto segundo: o regresso de Mahabharata à Carrière de Boulbon, agora encenada por Satoshi Miyagi, trazendo à memória a encenação de 1985 de Peter Brook, que fez descobrir o local (ver PÚBLICO de 16 Julho). Gesto terceiro: Mai, Juin, Juillet, revisitação dos acontecimentos que puseram em causa o festival, em 1968, escrita por Dénis Guénoun e encenada por Christian Schiaretti, na Ópera Grand Avignon.

Na abertura, então, O Príncipe de Hamburgo, Kleist, revisitação do idealismo romântico alemão sob a vigia das pinturas que relembram a encenação de Vilar, pintadas nas janelas fictícias dos edifícios que que rodeiam o Palácio dos Papas. Quadros vivos no exterior a olhar para as pinturas mortas no interior. O mito contra a história. O poder do teatro contra o poder dos papas. E no centro, agora como há 63 anos, um homem, o Príncipe de Hamburgo, que se recusa a assinar a sua própria libertação porque espera mais dos outros, não apenas um perdão.

Não era só um texto. Ainda não o é, mesmo que já não exista um Napoleão para enfrentar, e assim liberar uma Alemanha ocupada, como havia sido a intenção de Kleist ao escrever a peça em 1810. E Corsetti, numa encenação que faz uso de marcas características que nos recordamos das várias vezes em que passou pelo Teatro Nacional São João – os vídeos e as projeções, o jogo de sombras construído pela iluminação, uma cenografia oblíqua e rarefeita – assume que, hoje, Frederico de Hamburgo não pode ser apresentado como o idealista que se abandona a uma batalha. “É um texto de perdas”, diz o encenador, que lida de frente com esse mito, chamando a utopia para o presente, numa entrevista do programa: “Estamos hoje perante um conjunto de actos falhados, de quedas, onde a vitória não é merecida, uma vez que ela é obtida desrespeitando as ordens recebidas e quase por erro.”

E assim, ao Príncipe que sonhou poder vencer todas as guerras, Corsetti opõe a impossibilidade física de as vencer, ao abandonar os actores contra a frieza das muralhas e sempre em desequilíbrio nas estruturas cénicas de ferro e madeira: “Se a vida é uma guerra, uma batalha não é senão um episódio dessa vida.”

O pano de fundo criado pelas imagens diminui as suas presenças a joguetes, como comprovará o momento final no qual o príncipe (interpretação sublime de Xavier Gallas, de camisa branca comme il faut) é manipulado pelas suas tropas, como se fosse uma marioneta de tradição popular.

Em 1951, Vilar construía uma metáfora que obrigava a França a olhar de frente para o seu passado de nação ocupada e, assim, pensar a sua responsabilidade. Em 2013 Corsetti vê, no impulso da conquista, “um medo abjecto de morrer”. Hoje o sentido político  de um texto como este é outro, talvez mais longínquo na sua percepção, bastante mais subterrâneo. “A escrita de Kleist é de uma precisão quase cirúrgica no que respeita às palavras mas também quanto às feridas que elas vão abrir.” De um texto concreto Corsetti constrói uma encenação metafórica, uma mise-en-abîme onde a ilusão sustenta a uma peça “profundamente enigmática”. Dir-se-ia que Corsetti escolhe o sonho do Príncipe no lugar da acção, privilegiando, por isso, “uma ossatura [dramatúrgica] que opera do lado do enigma”.

Não será, assim, uma concidência que nas pistas lançadas a partir da programação por Olivier Py nos possamos perguntar o que pode o teatro oferecer à própria História. Jean Vilar, em 1968, não está longe desse Príncipe de Hamburgo que se recusa a escolher entre a morte e a vida. Em Mai, Juin, Juillet, Dénis Guénoun ensaia tentativas de compreensão dos modos de resiliência de um homem que, então, foi acusado de cedência ao poder institucional e político. “Vilar, Béjart, Salazar”, gritou-se em 1968, juntando num mesmo protesto as referencias à presença do coreógrafo francês Maurice Béjart, que apresentava Messe pour un Temps Present, e o ditador português. Três rostos que representavam o passado para os jovens que desceram de Paris para fundar uma nova sociedade depois de em Maio terem ocupado o Théâtre de l’Ódeon, na capital.

Ao desejo de anulação do festival, por se encontrarem em lados opostos os que queriam um novo teatro, sem regras, e os que faziam a mudança quotidianamente, Vilar respondeu sempre com um sentido de resistência que, ainda hoje, define o espírito do festival. Em ano de novas manifestações por um outro estatuto do profissional do espectáculo, ouvir que houve quem pedisse a Vilar que abandonasse a direcção do festival por terem ocorrido anulações de espectáculos é profundamente irónico. Dois dias antes da estreia, os intermitentes acusavam Olivier Py de não os defender. Na sala, no momento do confronto, as atenções viraram-se para o actual director (que antes de Avignon dirigiu, de 2007 a 2012 o mesmo Théâtre de l’Ódeon), num misto de expectativa e comiseração.

Ao texto de Guénon falta, porém, a centelha de vida que define, ainda hoje, as bases do teatro francês. E a encenação de Christian Schiaretti gere com frieza e parcimónia uma massa de 45 actores, provocando perplexidade ao escolher vestir os directores de teatro da altura (Robert Planchon, José Valverde, François Jeanson, Maurice Sarrazin, George Wilson, Hubert Gignoux...) como burocratas da cultura.

Seria um gesto profundamente perverso transformar a reunião de Julho de 1968, no Théâtre de la Cité, em Aubervilliers, num reunião de altos quadros da finança. O que dizem os directores – o que querem proteger - são hoje os direitos fundamentais da burocracia teatral francesa. Mas Schiaretti nunca assume nada, esconde-se sempre na aparêcia, auxiliado por um texto que se esconde atraás de uma diléctica entre ficção e História, entre dramaturgia e intervenção. Basta comparar este texto com Nouveau Roman, que Christophe Honoré apresentou em Avignon há dois anos. Então, os protagonistas da mudança da literatura francesa falavam – ou Honoré punha-os a falar – de tudo o que não estava nos livros. Guénoun aquilo que faz é encerrar o teatro na sua torre de marfim e usar expressões como “arte e cultura” para arregimentar ideias vagas sobre o compromisso público do próprio teatro com a realidade que, então, se dizia estarem a defender. Passaram 45 anos e, ao longo de quase quatro horas, ninguém arrisca perguntar que ecos ainda hoje se sentem. Todo o espectáculo é apenas um truque visual, uma ambiguidade que perturba e um passo em falso que simplifica a história, e se esconde atrás de um desejo permanente de não-comprometimento. Estamos, verdadeiramente, do lado da canonização, e não da evocação, como parecia pretender Olivier Py.

Crítico de teatro e dança

 

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