A Bovary de Rodrigues e o Rodrigues de Pinto Ribeiro

Ainda sobre a adaptação do romance de Gustave Flaubert ao teatro, e sobre as razões para voltar aos clássicos

Foto

António Pinto Ribeiro é um programador de grande mérito e um homem de cultura com opiniões fortes e relevantes. A propósito da encenação de Bovary, por Tiago Rodrigues, estreada no Alkantara Festival, afirma António Pinto Ribeiro em Como abordar um clássico, publicado no Ípsilon a 4 de Julho, que “o romance era logo no início ‘despachado’ numa síntese feita com alguma caricatura”. Ora isto é uma interpretação distraída da peça. Quem despachava o romance nessa “síntese” era a personagem do advogado de acusação, interpretada por Pedro Gil. E aquilo que parece ter “alguma caricatura” é um exercício bastante complicado para o actor, que num só fôlego resume todos os episódios do romance, sem perder o tom, nem a dicção, nem tão pouco a inteligibilidade de uma narração dita à velocidade de um corridinho.

A opção de revelar logo de início os acontecimentos que vão dar-se (a que os ingleses chamam spoiler) foi muito usada por autores como Nabokov ou Toni Morrison. É uma estratégia para levar o espectador a concentrar-se nos nervos da construção dramática, que revelam as personagens e as dinâmicas entre elas para lá da eventual anedota sugerida pelos acontecimentos. Até ao final da peça de Rodrigues, boa parte dos episódios que constituem o romance de Flaubert são depois desenvolvidos, num trabalho que permite aos cinco actores interpretarem ou pelo menos glosarem um grupo de personagens bem mais variado — sem necessitarem para isso de sair de cena ou mudar de penteado.

Escreve mais à frente Pinto Ribeiro: “O que se repunha não era pois o texto de Flaubert, mas o juízo que essa obra motivou nos seus contemporâneos.” Os protagonistas da Bovary de Rodrigues são de facto os dois advogados que intervieram no processo movido contra Flaubert em 1857 e o director da Revue de Paris, onde o seu Madame Bovary foi publicado por episódios. Ou melhor, não são! Os protagonistas desta Bovary são os próprios actores Pedro Gil e Gonçalo Waddington, que, através da leitura que fazem do romance, e por via dos advogados, encontram depois maneira de entrar na obra, representando outras personagens e envolvendo-se na acção. Ou seja, o que é reposto é mesmo o texto de Flaubert, embora a retórica da peça use o processo em tribunal como porta de entrada — no que é uma admirável reconstrução da História, já que Madame Bovary só teve direito a ser publicado integralmente, e em livro, depois dele.

Continua Pinto Ribeiro: “Há uma marcação arguta que, tendo por objectivo transpor para o presente o choque social de um gesto tido como imoral — a infidelidade ou o rodopio de amantes de Bovary —, acaba por falhar redondamente por má gestão deste gesto actual. Trata-se dos beijos entre personagens do mesmo sexo, um gesto que neste palco ainda poderia produzir o choque moral mas que acaba, por redundância e excesso, por transformar-se num gesto gratuito, perdendo toda a eficácia do seu processo.” A cena é mal contada por Pinto Ribeiro, porque esquece os pormenores da sua construção. Antes de os “advogados” Pedro Gil e Gonçalo Waddington se beijarem, eles disputam a “Bovary” Carla Maciel. Cada um a puxa para si, como se o corpo dela fizesse parte dos argumentos e dos caprichos de cada um. E assim como a disputam, também a beijam. E como nenhum pode ter a Bovary só para si, disputam o número de beijos que lhe dão; visto que nem assim desempatam, decidem disputar a intensidade dos beijos e finalmente, já numa fúria competitiva acerca de quem é o maior galo na capoeira, acabam por chocar violentamente num beijo. O beijo torna-se intenso, demora e demora. A peça continua e ainda eles continuam a beijar-se ao fundo do palco, sentados no sofá. Entretanto, os outros três actores em palco também se beijam entre si e todos haverão de beijar todos. Dizer que existe um beijo “entre personagens do mesmo sexo” não é falso, mas é redutor. Toda a gente beija toda a gente naquele palco.

A cena dos beijos é um bom exemplo para entender uma técnica usada por Flaubert para “montar” alguns episódios de Madame Bovary, e ilustra bem o rigor com que Rodrigues usou não apenas a história, mas também alguns elementos estruturais empregues na sua construção. Àquilo a que hoje chamamos estrutura, Flaubert chamava “movimentos”, e uma das características estilísticas desses movimentos encontra-se na forma como ele prepara um episódio, antes de acontecer, e na forma como depois se despede dele, deixando que os seus elementos se diluam, cheios de ressonâncias, no episódio seguinte. A cena dos beijos é ainda importante para entender a moral de Rodrigues no contexto desta peça, se não mesmo no contexto do seu trabalho desde o Coro dos Amantes. A saber: as paixões, as “experiências”, os arroubos momentâneos, os desejos súbitos são tão borbulhantes, pueris e passageiros como a adolescência. Tal como o tráfico de beijos, são divertidos, mas terminam no momento em que acontecem e as suas consequências, em caso de insistência, enlouquecem e são destrutivas.

Bovary é vítima dos seus caprichos românticos, das suas ambições de grandeza e, finalmente, da sua profunda mediocridade (o próprio Flaubert se queixava, enquanto escrevia, do quanto ela era aborrecida). E isso, se bem que fora de moda, é uma crítica flagrante de Rodrigues aos costumes da sociedade contemporânea, que trivializou a vida amorosa e o trabalho dedicado e os veio substituir pelo bricabraque das relações transitórias e das oportunidades do momento, sem outro investimento que não o do gasto supérfluo, sem outro futuro que não a recompensa imediata e a perpetuação das ilusões e das mentiras. É neste ponto que surge uma personagem patética, mas capital, na sua peça: Charles Bovary, ou melhor dizendo, “Charbovary”, interpretada pelo próprio Tiago Rodrigues. Este homem ridículo, que nunca está preparado (ou porque fala baixo, ou porque não sabe o que dizer ou como dizer, ou porque não sabe abraçar a mulher que deseja, ou porque não sabe dançar, ou porque está em cuecas, ou porque é apanhado na plateia), é o único herói de Rodrigues: na sua mediocridade, tão profunda como a da mulher, ele tem ao menos a lucidez de um amor dedicado. E nisso triunfa: ninguém beijou tantas vezes Bovary como ele, ninguém a teve nos braços tantas vezes como ele, ninguém partilhou tanto tempo com ela como ele. Os outros podem tê-la usado em instantes de dissipação, mas só ele guardou para si tudo o que Emma Bovary foi. Até as cartas dos amantes passam a pertencer-lhe.

O imaginário à volta de Bovary reside nas suas traições, nos seus amantes, naquilo que foge ao recato da vida doméstica por ela odiada. O que Rodrigues encena é a cómica banalidade da sua ânsia de vida romântica, por oposição ao amor que apesar de tudo perdura na memória de um marido enganado.

Ao adaptar um texto desta envergadura para o palco, o grande risco está no que subtrair. Rodrigues optou por eliminar os elementos que caracterizam a burguesia provinciana da Normandia do século XIX, expondo apenas os músculos, os ligamentos e as articulações que podem caber no corpo de uma sociedade contemporânea como a nossa. Não é impunemente que dá uma atenção particular à operação estúpida feita por Charles para agradar à mulher , que quer vê-lo tornar-se um cirurgião reconhecido; à espiral de endividamentos e operações financeiras a que Emma se entrega para satisfazer os seus devaneios de dama romântica; ou à mudança do casal de uma pequena comunidade rural para uma cidade de maiores dimensões (ainda assim demasiado pequena para as ambições de vida social de Emma).

Se conjugarmos estes elementos com um elenco maniacamente sincronizado com esse tempo teatral em que a tensão dramática e o ritmo burlesco se conjugam, torna-se transparente que Rodrigues pretende questionar não as razões do suicídio de Emma, mas as suas transgressões que nos são comuns e nos toldam ou impossibilitam o futuro. Na sua versão, Rodrigues sublinha que Emma prefere suicidar-se a ter de confessar ao marido as suas dívidas e traições, que a deixaram arruinada de finanças e de espírito. Porque prefere ela cancelar o futuro — deixando a filha órfã e o marido destroçado — a ter de enfrentar a realidade? Quais são os fundamentos do seu e do nosso egoísmo, que só conduz ao desespero?

São perguntas eloquentes. No entanto, António Pinto Ribeiro termina o seu texto desta maneira: “Serão várias as razões e vários os pretextos para se abordar um clássico (...). Quanto à forma de o abordar, o melhor é criar as condições para que a pergunta surja clara e pertinente. Tudo o resto é artifício em que o excesso de luzes se transforma em nevoeiro.” Esta repreensão velada à Bovary de Rodrigues esconde igualmente uma incapacidade — identificar aquilo que tão justamente exige. 

Sugerir correcção
Comentar