A boca silenciosa de deus

O mais recente romance de Valter Hugo Mãe é uma verdadeira declaração de amor à Islândia

Há na beleza feroz da paisagem islandesa algo de desolação, de abandono, de inevitável solidão. E isso transmite-se sem fim a quem nela vive. Resta aprender a viver com isso, aprender a transformar a escuridão em paciente espera, as crateras fumegantes em entranhas de dragões antigos, as enormes montanhas de gelo em gigantes que olham por nós, os rios indomáveis em serpentes benignas, os prados queimados pelo gelo e pelo vento em charnecas floridas onde pastam ovelhas, e tratar os negros abismos como se fossem as bocas silenciosas de deuses. Há que saber que, naquela ilha, a água, a pedra, o vento e o fogo são habitados por forças vitais. E é mesmo assim que tudo isto surge no mais recente romance de Valter Hugo Mãe (n. 1971), A Desumanização, cuja acção tem lugar na Islândia. O autor conseguiu passar para a escrita, com uma notável e singular sensibilidade poética, o avassalamento provocado por aquela paisagem geologicamente igual à dos “dias do começo do mundo”. Uma personagem, explicando a Islândia à filha, diz: “Não te aproximes demasiado das águas, podem ter braços que te puxem para que morras afogada. Não subas demasiado alto, podem vir pés no vento que te queiram fazer cair. Não cobices demasiado o sol no Verão, pode haver fogo na luz que te queime os olhos. Não te enganes com toda a neve, podem ser ursos deitados à espera de comer. Tudo na Islândia pensa. Sem pensar, nada tem provimento aqui.”

Valter Hugo Mãe deu novas roupagens a elementos da mitologia nórdica, fundindo-os com outros de carácter contemporâneo. Numa atmosfera dominada pelos elementos, ferozes e por vezes opressivos, de uma natureza não subjugada pelo homem, tão característica de um tempo que apesar de actual nos remete sempre para a memória lírica do mito, para um tempo dominado por uma sombria solidão, o autor ergue uma história de amor e de redenção numa aldeia perdida num fiorde no Noroeste da ilha.

O lugar são duas dezenas de casas e a igreja, um sítio onde parece que tudo foi negado aos seus habitantes, menos o amargo sofrimento. Halldora é a irmã “menos morta” de duas gémeas (Sigridur está enterrada). Vive com os pais, um pescador e uma mãe perturbada que se corta na pele para que essa dor faça esquecer outras mais profundas. Einar é o “tolo” da aldeia, vive num quarto na igreja (arranjado por outro homem que “havia anos o tentavam domesticar”); lembra-se ainda de quando era como os outros rapazes, mas isso foi antes de um estranho acidente acontecido com o pai. Na inocência da infância de Halldora nasce o amor desta por Einar — que se torna no fio condutor da narrativa. Há ainda mais duas ou três personagens que, à vez, vão contribuindo para manter a acção viva até ao epílogo.

Valter Hugo Mãe faz um sábio uso da cultura islandesa — não apenas da sua enorme tradição literária épica — ao integrar no romance, com grande mestria, referências à culinária tradicional, à pintura (sobretudo à obra de Jóhann Sveinsson Kjarval) e à música (é subtil a evocação dos hinos religiosos compostos por Hallgrímur Pétursson, poeta do século XVII); no campo literário é sobretudo notória, mais do que qualquer outra, a influência do “sopro poético” de Thor Vilhjálmsson (Arde o Musgo Cinzento, Cavalo de Ferro, 2012), o seu gosto pela prosopopeia, a sua maneira tão singular de descrever como o homem islandês se relaciona com as forças da natureza, primordiais e misteriosas, “como um veleiro que se move entre as costas do mito”, usando as palavras do poeta Ted Hughes. “Contava-se que, num tempo inicial, voavam dragões famintos que devoravam tudo quanto lhes adoçasse as entranhas zangadas. Contava-se que, devastadas as coisas todas, os dragões haviam perdido a capacidade de voar e haviam parado exaustos um pouco por toda a parte. Arfavam e empederniam. Dizia-se que, de tão grandes e espessas peles, haviam radicado como montanhas de boca aberta.”

Todo o romance é atravessado pela presença de deus, que se revela sempre através da beleza da poesia ou da natureza. Não é o Deus de nenhuma das religiões monoteístas (apesar de algumas referências à Igreja), mas uma estranha combinação entre animismo e as ideias de Espinosa. É o deus silencioso que vive nas coisas, que só fala através da poesia; o homem é apenas a “carne do poema”, um ser sempre à espera do fim, na desolação da sua existência, porque “tudo na vida tem a ver com a morte”.

Em A Desumanização — que é, provavelmente, o melhor romance de Valter Hugo Mãe —, a linguagem, a maior virtude do livro, é cuidada e alegórica, onírica e consistente, sem se deixar cair em exageros desnecessários que, do ponto de vista estético, poderiam estragar o conjunto. As personagens, tão típicas do universo literário do autor (enjeitados, desvalidos ou diminuídos aos olhos da sociedade), abandonam desta vez alguma da sua bondade para, por fim, experimentarem uma verdadeira epifania.

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