“A atitude de utopia do Zeca Afonso é o que nos move permanentemente”

Associação José Afonso assinala os 30 anos da morte do cantor celebrando-lhe a vida, a obra e o exemplo cívico com concertos, tertúlias, exposições e reedições.

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Francisco Fanhais, Paulo Esperança e Rui Pato: importa é o reconhecimento da obra de José Afonso Rui Gaudêncio

A ideia é simples e directa: Insisto não ser tristeza. Foi José Afonso que o escreveu, num poema, e serve hoje de mote à celebração da sua vida, obra e exemplo cívico, a pretexto dos 30 anos passados sobre a sua morte (a 23 de Fevereiro de 1987). A lista das iniciativas previstas é extensa e foi divulgada à imprensa nas instalações em Lisboa da Associação José Afonso (AJA), que também completa 30 anos em 2017. Francisco Fanhais, cantor e presidente da direcção da AJA, justificou assim a escolha do mote: “Pareceu-nos sintomático por ele ser quem era: um homem de não desistir, de transmitir essa capacidade de luta aos outros. Não estamos conformados com o que a situação em que estamos a viver, por mais aberturas que possa haver (e há). Não se pode dizer que já atingimos um patamar paradisíaco e que a partir daqui está tudo a correr bem. Não. Por isso, a atitude de utopia do Zeca Afonso é o que nos move permanentemente.”

A seu lado, Rui Pato, médico de profissão, que acompanhou José Afonso à viola entre 1961 e 1969 (hoje é vice-presidente da mesa da assembleia-geral da AJA), completou a ideia desta forma: “Em 23 de Fevereiro de 1987 o Zeca pegou na trouxa e zarpou e, contrariamente ao que escreveu na Balada de Outono [a versão instrumental, publicada em 1964, tem arranjos de Rui Pato], os rios que vão dar ao mar não deixaram os seus olhos secar e as águas das fontes não se calaram, nem as ribeiras choraram, porque o Zeca continuou a cantar. E é isso que a Associação quer fazer.” Mas afastando o lado fúnebre: “Não queremos que estes 30 anos sejam virados para o umbigo da associação nem para o obituário. Mas sim para celebrar a vida, a obra e o exemplo do Zeca.”

Um “pai” da world music

Fundada em Novembro de 1987, com 14 núcleos em Portugal e 1 (aberto já este ano) em Bruxelas, a AJA foi declarada pessoa colectiva de utilidade pública em 2010 e o projecto comemorativo Insisto não ser tristeza foi declarado de “interesse cultural” a 15 de Novembro de 2016 pelo Ministério da Cultura. Paulo Esperança, vice-presidente da AJA, diz que isso é importante (sobretudo para efeitos fiscais e de mecenato, numa casa de “contabilidade organizada”), mas acha mais importante o reconhecimento da obra de José Afonso. “Uma das coisas com que a AJA se debate é algumas tentativas, muitas vezes malévolas, de encostar o Zeca a cantor de intervenção. Isso é reduzi-lo. É esquecer as influências que ele tem, na sua música, fruto das suas andanças por África, Trás-os-Montes, Beiras, Algarve, ilhas, Galiza e Astúrias. Tudo isso constrói o cadinho que dá origem à sua obra. José Afonso pode ser considerado o ‘pai’ da world music em Portugal.” Nas celebrações haverá concertos, mas Paulo Esperança diz que a AJA não quer apenas isso. “Queremos entrar na obra poética do Zeca, que durante anos foi menorizada, e queremos entrar na sua criação musical. Isso é muito importante para se perceber a dinâmica que levou a que determinada música nascesse assim.”

Reeditado CD da Galiza

Exposições, há duas essenciais: Desta Canção que Apeteço, sobre a obra discográfica de José Afonso (andará por Évora, a 3 de Fevereiro; Mira-Sintra, Santarém, Lisboa); e Geografia de Uma Vida, ainda em fase de acabamento, que seguirá as suas andanças por Portugal e pelo mundo (esta será inaugurada em Abrantes, também a 3, seguindo para Alcântara, Almada, Santo André, Santiago do Cacém e Faro). Os concertos começarão na sede da AJA em Lisboa, a 26 de Janeiro, com Joana Bagulho a tocar, em cravo, obras de Carlos Paredes. Depois haverá, entre outros, numa lista que já reúne duas dezenas em várias localidades, Zeca Sempre (Teatro das Figuras, Faro, a 19 de Fevereiro, com Francisco Fanhais, Rui Pato, B. Fachada, Manuel Freire, Afonso Dias e outros), Tributo a Zeca Afonso (Conservatório da Gulbenkian, Braga, a 23 de Fevereiro, com o grupo Canto D’Aqui, Uxia, Artur Caldeira, Ana Ribeiro e outros), Concerto dos 30 anos (Teatro Garcia de Resende, Évora, com Francisco Fanhais, Rui Pato, Nuno do Ó e outros) e outro Tributo a Zeca Afonso (Convento de Santarém, a 7 de Abril, com Sérgio Godinho, Catarina Vasconcelos e Márcio Pinto).

A par disso vão ser relançadas duas obras: o CD duplo Galiza a José Afonso (gravado ao vivo em 1985, agora reeditado mas que só será vendido nos núcleos da AJA) e o livro (esgotado) Escritas do Maio, escrever com José Afonso, de Miguel Gouveia. Entre as restantes iniciativas incluem-se tertúlias, debates, arte urbana, sessões Aja Jazz, com José Duarte – no núcleo da AJA em Lisboa, nos dias 2, 9 e 16 de Fevereiro – e até uma Noite José Afonso, em Junho, em Évora, com a presença (ainda por confirmar) de Patxi Andión. Será também, no dia 14 de Abril, lembrado Adriano Correia de Oliveira e a sua obra, pelos 75 anos do seu nascimento, com um concerto na Casa de Cultura de Setúbal.

“Cantigas da pesadona”

O trabalho da AJA, dizem os seus dirigentes, quer-se virado ao futuro, às novas gerações. Como exemplo, Fanhais recordou um episódio que se passou com ele e o marcou até hoje. Foi numa sessão de homenagem a José Afonso em Viana do Castelo, em 1986, um ano antes de ele morrer. “Fui lá cantar, e no dia seguinte de manhã cedo estava na estação para apanhar o comboio para baixo. Chegou-se ao pé de mim um rapaz novo, daqueles que facilmente identificaria como um arrumador. Olhou-me de frente e disse: ’tiveste ontem a cantar na sessão do Zeca? Eu tam’ém lá ’tive, gramei das cantigas, pá, cantigas da pesadona. És amigo do Zeca, podes levar um recado ao Zeca?’ Eu, cada vez mais espantado, disse-lhe: posso. ‘Dá-lhe um abraço cá do rapaz e dá-lhe este recado: o Zeca não morre no coração da malta nova.’ Fiquei sem palavras.”

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