A arte de rua de Ken Loach

Ken Loach não mudou, mudaram o mundo, o cinema, a TV, a política. É o que há nele de mais admirável. O último filme, Eu, Daniel Blake, um documentário sobre a obra e um ciclo na Cinemateca mostram a crença profunda de um cineasta: não há realismo sem humanismo.

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Ken Loach saiu da reforma que se tinha auto-imposto, em 2014, por causa da vitória dos conservadores (“bastards!”, ) nas eleições inglesas, e fez Eu, Daniel Blake , Palma de Ouro em Cannes 2016 Joss Barratt

No filme que se estreia em paralelo a Eu, Daniel Blake, o documentário Versus – a Vida e os Filmes de Ken Loach, evoca-se a dado passo um momento particularmente hostil da recepção britânica aos filmes do cineasta: um artigo do Daily Telegraph, em 2006, a arrasar Brisa de Mudança (um filme sobre o independentismo irlandês nos anos 20, vencedor da Palma de Ouro em Cannes), que o autor do texto remata esclarecendo que “não viu o filme” e que não precisa de o ver para o criticar, “da mesma forma que não precisa de ler o Mein Kampf para saber que Hitler era um traste”. Não há muitos realizadores tratados com esta violência, não há muitos realizadores contemporâneos capazes de provocar uma reacção de rejeição que ultrapasse as estritas barreiras da crítica cinematográfica e entre em domínios mais especificamente políticos.

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O seu ponto de partida são as “vidas reais”, e é partir daí que se vai implicar forçosamente numa dimensão política: Eu, Daniel Blake

Mas isso continua acontecer frequentemente com Ken Loach. Invocar Hitler a seu propósito é um disparate enorme, por todas as razões e mais uma: é que se Loach tivesse um poder e uma influência comparáveis aos do ex-fuhrer, o mundo estaria certamente diferente do que o que está. O mérito dos seus filmes, bem mais modesto do que um efeito operativo de transformação do mundo, é apenas o de salientar e trazer à tona as grandes dissensões políticas, sociais, e culturais do mundo contemporâneo, mais habituado à procura do “consenso”. É, aliás, bastante curioso, e muito significativo, que fazendo uma leitura da crítica internacional, sobretudo a anglo-saxónica, se veja Loach a ser frequentemente adjectivado de “cineasta radical”.

E dá vontade de perguntar: “radical” porquê? Não pela sua prática cinematográfica, legível e acessível, reminiscente aliás de tradições populares (ou antigamente populares) como o neo-realismo ou como a voga realista que, também com influência dos novos autores teatrais, tomou conta de boa parte do cinema britânico. Quando muito, e só mostra como o centro se deslocou, “radical” apenas politicamente, e por continuar a fazer aquilo que fazia desde os anos 60: contar histórias de vidas reais, credivelmente reais, em geral pouco favorecidas pelas circunstâncias e ambientadas em universos por norma frequentados por aquele tipo de pessoas a que antigamente se dizia pertencerem à classe operária (que é uma expressão um pouco em desuso).

É evidente que, nesse sentido, há uma dimensão política no cinema de Loach: desde sempre que os seus filmes, nos melhores como nos melhores casos, mostra aquilo que o poder não quer ver, ou mostra o que contraria os discursos oficiais do poder político. Não há realismo sem humanismo, e Loach acredita nisso profundamente. O seu ponto de partida são as “vidas reais”, e é partir daí que, como ele diz em Versus, se vai implicar forçosamente numa dimensão política. Embora, como diz ele ainda em Versus, meio jocosamente, tenha saído da reforma que se tinha auto-imposto depois de O Salão de Jimmy por causa da vitória dos conservadores (“bastards!”, ) nas eleições inglesas, retomando a actividade com Eu, Daniel Blake, os seus filmes nunca são panfletos nem manifestos nem acusações de dedo estendido. São sempre histórias de pessoas, retratos de comunidades, em combate contra a adversidade social.

E os jovens chegaram ao establishment

Isso vem do princípio, e daquela parte da obra de Loach que é menos conhecida internacionalmente: o seu trabalho para a televisão nos anos 60. Deve ter sido um momento ímpar a extraordinária abertura da televisão britânica em meados dessa década, aliás provavelmente acompanhado reviravolta cultural que por esses anos acontecia e provocava múltiplas ondas de choque. À BBC, coração do establishment televisivo britânico, chegava uma geração de jovens realizadores que não eram os angry young men mas vinham cheios de som e fúria. Um deles foi, por exemplo, Peter Watkins, recentemente objecto de retrospectiva integral pelo DocLisboa e pela Cinemateca (na entrevista que lhe fizemos, publicada nestas páginas, Loach aproveitou para nos perguntar por notícias de Watkins, de quem perdeu o rasto há anos), que se fez expulsar rapidamente ao realizar um filme, The War Game, sobre os efeitos de um ataque nuclear à Grâ-Bretanha – e que a BBC preferiu não exibir, supostamente por ser demasiado “assustador” para um público televisivo, mas também por pressões ministeriais. Outro deles foi Loach, que como Watkins estava ainda na casa dos vinte e tal anos. De imediato se atirou a ficções embrenhadas na realidade da altura, movido por um desejo de “dramaturgia contemporânea”, como ele diz. Vários dos filmes que fez então causaram um impacto inusitado. Three Clear Sundays, sobre a pena de morte, e mais ainda Cathy Come Home, história de uma mulher acossada pela assistência social e que acaba por perder a custódia dos filhos.

O estilo realista, a trazer o teatro para a rua e para os cenários dos bairros pobres, a maneira como inseria fragmentos de uma realidade captada documentalmente e nela inseria a ficção (a série onde os filmes passavam, Wednesday Play, estava habituada a um tele-teatro mais convencional), provocou confusão em muitos espectadores – alguns chegaram a escrever à BBC perguntando se o que tinham visto era realidade ou ficção – e celeuma, com acusações de desonestidade e de falta de ética (mesmo se o processo de filmar na dobra entre ficção e documento já não era novo nos anos 60). Versus mostra imagens de um debate sucedido na altura – pela aparência cénica, uma espécie de “Prós e Contras”, com público no estúdio – e totalmente consagrado à discussão do filme, onde o interveniente “anti-Loach” tenta contrariar o realismo da obra puxando-a para a pura ficção, e sugerindo ao realizador, numa pequena pérola de cinismo, que já que ficcionou histórias para a próxima vez “ficcione também estatísticas”.

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Contar histórias de vidas reais, em geral pouco favorecidas pelas circunstâncias e ambientadas em universos por norma frequentados por aquele tipo de pessoas a que antigamente se dizia pertencerem à classe operária: Eu, Daniel Blake

Não foi a última vez que o trabalho para televisão de Ken Loach foi polémico. Vários telfilmes ao longo dos anos 70, sobretudo documentários sobre questões laborais ou questões sindicais, foram ou censurados ou abafados, depois de uma primeira e única exibição, durante décadas (e só já nestes anos 2010 é que vários dos trabalhos de Loach para a televisão foram libertados dos arquivos da BCC, da ITV, do Channel Four).

No seu melhor, Loach filma de facto “dramas contemporâneos”. Fê-lo na série inicial de filmes para cinema, entre o fim dos anos 60 e o princípio dos anos 70 em Poor Cow, crónica de uma Londres operária e nada swinging (Cinemateca, 6ª feira, 21h30), em Kes (Cinemateca, 2ª, 5, 21h30), história de um miúdo e do seu falcão amestrado num Yorkshire em que as minas começavam fechar, em Family Life (Cinemateca, 4ª, 7, 15h30), relato provocador e interventivo sob os efeitos perniciosos e contraproducentes dos métodos da assistência social no tratamento de doenças psicológicas ou psiquiátricas.

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Cathy Come Home: uma mulher perde a custódia dos filhos para a assistência social; Kes: um miúdo e o seu falcão num Yorkshire em que as minas fecham; Family Life: os efeitos da assistência social no tratamento de doenças psicológicas

Nesses filmes, a matéria humana vem primeiro, a reflexão política vem depois. Não admira, também por isso, que os seus filmes menos conseguidos, menos fortes, sejam os de época, como Terra da Liberdade, sobre os voluntários britânicos na Guerra Civil Espanhola, ou os seus vários filmes sobre a questão irlandesa (Brisa de Mudança, O Salão de Jimmy) – o mais acutilante dos filmes “irlandeses” de Loach será Hidden Agenda (de 1990 Cinemateca, 3ª, 13, 19h), com acção contemporânea, focado nos métodos poucos ortodoxos e à margem das leis da resposta do estado britânico às actividades terroristas dos grupos separatistas, e que lhe valeu acusações de estar a fazer “propaganda do IRA”.

A tenacidade de Loach – e isto vê-se em Versus – é tão mais surpreendente quanto ele próprio é uma figura franzina, de discurso suave e modos gentis. Amigos e colaboradores contam como tem hábitos profundamente britânicos e conservadores – que gosta de ver cricket, que gosta de ver musicais. Tem origens modestas (é filho de operários), tento ser actor antes de ser realizador, e conheceu tragédias pessoais marcantes: em finais dos anos 70 perdeu um filho num acidente de automóvel em que era ele o condutor. Se é um idealista, também já percebeu que o idealismo, de vez em quando, tem que ser vergado em face das circunstâncias: em finais dos anos 80, sem conseguir financiamento para filmes e persona non grata para as televisões sobreviveu filmando publicidade, nomeadamente um anúncio para um dos grandes símbolos do capitalismo global, a McDonalds. Vê-se esse anúncio (ou parte dele) em Versus, acompanhado da reflexão de Loach sobre a necessidade de por vezes engolir o orgulho: “depois de tanto ter criticado os meus colegas que se rendiam à publicidade, ali estava eu a filmar aquilo”.

Com o tempo, Ken Loach tornou-se uma espécie de consciência crítica de Inglaterra e da Grã-Bretanha. De entre os da sua geração, talvez seja o único capaz de ter a visibilidade e o tipo de importância que lhe dão, mesmo quando é para o atacar. Duma forma que parece genuinamente surpreendida, ele repete que se limita a continuar a fazer o que sempre fez, fiel às motivações do início da sua carreira. Loach não mudou, mudaram o mundo, o cinema, a televisão, a política. È possivelmente aquilo que há nele de mais admirável.

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