A arquitecta que gosta de casas velhas

Joana Gonçalves, nascida em Bragança, foi distinguida com o Prémio Ibérico de Investigação da Arquitectura Tradicional, que esta terça-feira lhe é entregue em Lisboa. Foi o reconhecimento para a sua investigação sobre as antigas quintas da região transmontana, que vê como modelo para uma arquitectura contemporânea mais sustentável.

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Varanda da Quinta de Britelo DR
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Vista geral da Quinta de Britelo DR
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Vista geral da Quinta de Vale das Flores DR
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Portadas de madeira na Quinta dos Diogos DR
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Secção-tipo da parcela da Quinta do Cano
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Planta da Quinta de Britelo
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Planta da Casa da Pintora

Um meticuloso trabalho de levantamento do anel de velhas quintas que circundam a cidade de Bragança, com casas multi-seculares maioritariamente construídas em xisto, um tipo de arquitectura muito dispersa pela região e até agora pouco estudada, valeu à arquitecta Joana Gonçalves, nascida nesta cidade há 24 anos, a 2ª edição do Prémio Ibérico de Investigação da Arquitectura Tradicional, no valor de três mil euros, que esta terça-feira lhe será entregue em cerimónia a realizar, às 18h, na sede da Ordem dos Arquitectos (AO), em Lisboa.

“A consistência e excelência” do trabalho, intitulado Tradição em Continuidade: Levantamento das quintas da Terra Fria transmontana e contributos para a sustentabilidade, foram as razões invocadas para a decisão do júri do concurso que foi promovido pela OA em parceria com as fundações espanholas Convento da Orada, Antonio Font de Bedoya e Colegio Oficial de Arquitectos de Léon.

De um número inicial de 36 candidaturas, o júri apurou oito finalistas, e atribuiu ainda duas menções honrosas: a Cristiana de Macedo Lamas, pela tese Consolidação e reforço de estruturas de alvenaria e de madeira. Técnicas de intervenção integradas na reabilitação arquitectónica do edificado antigo português; e a Marta Colón Alonso, por Transformaciones históricas en el Convento de San Francisco de Betanzos.

“Ainda estou a tentar perceber por que é que me deram este prémio”, perguntava-se Joana Gonçalves quando, na semana passada, falou do seu trabalho ao PÚBLICO numa sala do atelier de engenharia no Porto onde actualmente faz o estágio de entrada na OA.

“O que acho que será mais original, aqui, é a minha tentativa de fazer um estudo sociológico sobre como se morava ali, as tipologias das casas, a relação com o território, mas trazendo também para este trabalho a engenharia e fazendo parcerias com outras áreas de saber”, alinhava a autora em jeito de explicação, fazendo também notar que “há muitos trabalhos feitos na área da arquitectura tradicional, mas não neste sentido”. Recorda, a propósito, os levantamentos feitos, em meados do século passado, pelo geógrafo Orlando Ribeiro e pelas equipas do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa, que visaram mais os povoamentos concentrados, mas que – nota – foram também “fontes fundamentais” para o seu estudo.

O facto de ter nascido e vivido em Bragança facilitou a Joana Gonçalves – que se licenciou em Arquitectura na Universidade do Minho, em Guimarães – o conhecimento e o contacto com o objecto da sua dissertação final de mestrado.

Esta tipologia construtiva – as quintas de que Joana Gonçalves fala incluem a casa propriamente dita, mas também o quintal em volta, aquilo a que chama “unidades produtivas de escala doméstica”, e que são diferentes, por exemplo, das quintas senhoriais do Douro, marcadas pela mono-cultura – esteve muito concentrada ao redor dos principais centros urbanos da região transmontana, como Vinhais, Vimioso e Miranda do Douro. Mas Joana Gonçalves, até por razões de “pragmatismo”, focou a sua atenção em Bragança. Da centena de casas que sabe terem existido na região num raio de apenas cinco quilómetros, começou por fazer “um mapeamento de 60, com visitas e fotografias”, passou depois para um estudo mais aprofundado de 15, e realizou a monitorização – com sensores de temperatura e de humidade – de “nove casos de estudo” para perceber o comportamento dos edifícios; e realizou várias entrevistas.

A primeira realidade que constatou – e que lamenta – é que muitas das casas “desapareceram por completo: são agora silvas e entulho, que voltaram à terra”, diz.

Mas as que ficaram, e são poucas as que continuam habitadas, resultaram de “um apuramento de séculos” – a arquitecta diz que as raízes de algumas delas remontam mesmo ao século XII, tendo a maioria sido fundadas a partir do século XV.

São construções maioritariamente em xisto, mas que, mais importante do que o material de que são feitas, surpreendem pelas soluções construtivas. “Os habitantes usavam a pedra que tinham no local, o barro, e as telhas eram também feitas in-situ. Não havia tanta dependência do exterior, eles conseguiam fazer com o que tinham à mão”, nota a investigadora.

Neste processo de construção e ampliação continuada através dos tempos, de acordo com as necessidades que iam surgindo, aquilo que Joana Gonçalves mais destaca é a capacidade que as pessoas tinham de encontrar as melhores soluções para responder às questões da temperatura e da humidade. “Quando temos paredes, seja em pedra, seja em xisto, na ordem dos 80 centímetros, há uma grande inércia, e a temperatura no exterior vai demorar a sentir-se no interior”. Uma realidade que a arquitecta confirmou com a monitorização da temperatura tanto no Verão como no Inverno, e que confirmou a reduzida variação térmica dentro das casas.

É esta sabedoria prática acumulada durante séculos que Joana Gonçalves defende que seja aproveitada no nosso tempo. “Não são os nossos padrões de conforto, mas o que se pode tirar daí é que estas soluções, optimizadas com alguns sistemas que temos hoje, podem vir a ser utilizadas e mostrar-se melhores que muitas formas de construção que desenvolvemos nos anos 1980-90, quando ainda se acreditava na inesgotabilidade dos recursos”, defende.

É uma expectativa que colide, de alguma maneira, com a realidade que a arquitecta pôde constatar na sua terra, com muitas dessas casas desabitadas, em ruínas ou mesmo já inexistentes, situação resultante, no fundo, da perda da competitividade da agricultura e do abandono dos modelos de vida comunitária, substituídos pelo individualismo urbano.

“De facto, são poucas as casas que estão habitadas, e as que estão já perderam algumas das suas características essenciais”, diz a arquitecta, que, no entanto, pergunta: “Será melhor que as pessoas abandonem essas casas e vão viver para um apartamento dentro da cidade?...”

A resposta passará por mais informação das pessoas. Daí que defenda, como escreve na apresentação do seu trabalho, a necessidade de “estimular, através da leitura crítica deste património, um pensamento estratégico que relacione a arquitectura, o homem e o território”.

“Enquanto arquitecta, interessa-me a prática profissional, e a investigação dá-nos outra sensibilidade para lidar com este tipo de casos. Através da investigação podemos perceber que nem tudo falhou, e que temos ali muitas oportunidades que podem ser aplicadas na arquitectura contemporânea”, diz Joana Gonçalves, exemplificando com o aproveitamento da orientação solar, a própria implantação das casas tirando partido da terra, semi-enterradas, a relação com toda a escala da parcela...

“Encontrar respostas para os desafios do futuro exige um olhar sobre o passado, procurando estratégias alternativas para uma arquitectura contemporânea mais sustentável, social, ambiental e economicamente, que, simultaneamente, assente nos valores identitários da comunidade”, defende Joana Gonçalves.

E a arquitecta, na sua vida pessoal, tem vindo a pôr em prática essa visão. Se no Porto alugou uma casa antiga – ela que costuma dizer: “Olá, eu sou a Joana, gosto de casas velhas…” –, na sua terra natal adquiriu já uma dessas ruínas. “Estou a pensar aplicar parte do dinheiro do prémio na reabilitação de um exemplar da arquitectura vernacular transmontana que adquiri numa aldeia de Bragança”.

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