A arqueologia do futebol nos tempos do antigo regime

Em The Second Game, o romeno Corneliu Porumboiu recorda uma final dos anos 1980 para reflectir sobre o que mudou na Roménia em 25 anos – mas o futebol, esse, mantém-se intacto

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The Second Game nunca perde de vista o futebol

Falemos, então, do futebol que tem estado subjacente à edição do Curtas Vila do Conde em ano de Mundial de futebol, mesmo que de modo tipicamente “lateral” - com as fotografias do austríaco Josef Dabernig sobre equipamentos desportivos que adornam um dos foyers do Teatro Municipal, por exemplo, ou com a projecção do mais recente filme do cinesta romeno Corneliu Porumboiu. Que não é uma estreia absoluta em Portugal – já fora visto no IndieLisboa em Abril passado – mas que faz duplo sentido visto num Curtas sob o signo do desporto-rei.

Fá-lo, primeiro, porque Porumboiu, autor de 12:08 a Leste de Bucareste e do inédito em sala Police, Adjective, tem “história” com o festival - foi o convidado de honra da edição de 2012. E fá-lo, segundo, porque num programa dedicado ao futebol como a secção Fora de Jogo é este ano, a passagem de The Second Game é auto-explicativa. Trata-se de um filme ao mesmo tempo sobre o futebol enquanto “jogo bonito” e enquanto metáfora social, sobrepondo à dimensão puramente desportiva uma meditação sobre o tempo.

The Second Game propõe uma “segunda leitura” de um jogo de futebol que teve lugar em 1988 entre os clubes de Bucareste Steaua e Dínamo, pouco antes da queda do regime de Ceausescu. O écrã é inteiramente preenchido pelas imagens da transmissão televisiva da época, enquanto, em off, Porumboiu e o seu pai, Adrian, o árbitro profissional que comandou o jogo, fazem uma espécie de “comentário audio” ou extra de DVD que contextualiza e preenche os “buracos” necessários à sua compreensão, 25 anos depois.

Pela conversa entre pai e filho, apreendemos a rivalidade entre os dois clubes da capital, ligados às altas instâncias do regime e identificados com a polícia e com o exército; a pressão que ambos os clubes exerciam sobre os árbitros; os condicionalismos de uma realização televisiva que não podia mostrar incidentes em campo que seriam exemplos de uma conduta incorrecta numa sociedade comunista. O “segundo jogo” é, então, o jogo que se esconde nas entrelinhas do dérbi registado pelas câmaras da televisão romena, mas também o olhar que o filme lança sobre o tempo que passou desde então, como uma exploração quase arqueológica de um artefacto desenterrado numa escavação.

Mas mesmo com essa “sobrecapa” de meta-textualidade que se está a tornar na “marca registada” do realizador romeno (que poderá ser confirmada com a próxima estreia entre nós de Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo, o seu filme imediatamente anterior), The Second Game nunca perde de vista o futebol. E à medida que o jogo vai avançando, mesmo apesar da imagem de época trémula e indistinta, apesar da partida ter sido disputada no meio de uma fortíssima tempestade de neve que torna a bola quase impossível de ver, aos poucos Porumboiu pai e filho começam-se a calar e deixam o jogo falar por si.

O futebol acaba por sobrepôr-se a toda e qualquer questão política, toda e qualquer interpretação meta-textual. Como se o “segundo jogo” do título desaparecesse para apenas ficar o “primeiro”, o jogo original, jogado como se mais nada houvesse. The Second Game é um exercício de cinema simultaneamente radical e acessível, que permite múltiplas e infinitas leituras sobre a imagem, o cinema, a família, a sociedade ou a política – mas que mostra como o prazer puro do desporto, mesmo 25 anos depois, mesmo em condições menos que perfeitas, ainda mantém a precedência sobre tudo. 

 

 

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