600 cartas para contar um amor anónimo

A partir das cartas trocadas entre Alfredo e Maria de Lourdes publicadas em Amorzinho, Joaquim Horta apresenta um espectáculo no Negócio, Lisboa, que testemunha uma banal história de amor nos anos 30 e 40 portugueses.

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Na noite em que os pais de Joaquim Horta foram até ao Negócio – ZdB assistir à sua anterior peça, Mais Um Dia, finda a apresentação a mãe disse-lhe: “Foi bonito fazeres isto sobre a experiência do teu pai”. Em Mais Um Dia, o actor e encenador cruzava o relato de Ryszard Kapuscinski no calor do pós-independência de Angola em 1975, publicado sob o título Mais Um Dia de Vida – Angola 1975, com a sua própria estada no país quase 40 anos depois. Munido do livro do autor polaco, partiu para África sintonizado no confronto constante entre o país real e a mitificação dessas terras com que crescera – parcialmente desenhada com as histórias ouvidas ao seu pai acerca da breve passagem por um dos cenários da Guerra Colonial.

Na frase da mãe, Joaquim Horta detectou uma leve mágoa por a sua vida não ser também chamada, mesmo que tangencialmente, ao palco. Não tendo sido a razão primeira para agora dar vida a um outro livro, Amorzinho, reconhece que essa motivação possa ter ajudado a decidir-se pela adaptação de um livro de correspondência entre o empregado de escritório Alfredo e a costureira Maria de Lourdes, entre 1934 e 1943. “Li o livro e achei que era interessante trabalhar a partir de cartas, ainda por cima de anónimos”, diz Horta ao Ípsilon. De Alfredo e Maria de Lourdes sabemos apenas o que as cartas nos dizem. Da sua vida conhecemos justamente o que as 600 cartas encontradas por José Pacheco Pereira e Rita Maltez junto da comunidade Emaús – que faz recolha de todo o tipo de mobiliário e material antigo de que as famílias se desfazem – revelam.

Amorzinho, em cena no Negócio (Lisboa) até 26 de Novembro, existe num outro tempo, numa altura em que se namorava por carta, em que Portugal vivia sob o pesado manto da ditadura e em que a esperança no destino de uma rapariga podia ser colocada no florescimento de uma alcachofra. Quando Joaquim Horta começou a peneirar as cartas com os quatro actores (Raul Oliveira, Rita Durão, Ruben Soares e Sandra Faleiro), numa desmultiplicação das duas personagens reais que surgiu para impedir qualquer desejo real de representação de Alfredo e Maria de Lourdes (tornando-os mais difusos do que fatalmente concretos), havia de insistir numa frase de que “as raparigas se queriam livrar”. “A minha mãe contava-me”, confidencia, “que em nova queimava a alcachofra, atirava para cima do telhado e esperava que florisse para saber se o amor era correspondido ou não.”

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Um pouco como antes fizera com Angola, sobrepondo leituras, fotos ou relatos para procurar coincidências ou dissemelhanças, também em Amorzinho Joaquim Horta é tentado pela forma de convidar implicitamente o público a “reavaliar e enquadrar as suas relações” a partir daquilo que ouve de Alfredo e Maria de Lourdes. E aqui o essencial é que o amor entre estes dois anónimos se vive sem ponta de espectacularidade e não padece (nem pode) da maleita da ficção que, ao tentar invocar a vulgaridade, se enreda numa versão artificiosa e romântica da dita normalidade.

Por outro lado, se a ditadura é um fantasma silenciado e qualquer lampejo de acção ou consciência política passa ao lado de Amorzinho – no máximo temos Alfredo a contar que foi assistir a um filme sobre a guerra, mas com um entusiasmo ou profundidade menores do que as palavras que dedica a idas ao Guincho ou aos bailaricos –, como escrevia Diogo Ramada Curto na sua recensão ao livro no Ípsilon, “o apolitismo de tais vidas era acompanhado de uma enorme desigualdade entre os géneros, tal como se a Ditadura fosse reproduzida numa esfera mais íntima”.

Dissimulado e malandro

Quer para o público, quer para os actores, é evidente a presença do sentimento voyeurista, de espreitar sem permissão a intimidade de um casal que discute nestas missivas o sexo a que se entrega e que é referido como embriaguez – culpando o álcool pelo “deslize” que leva mais tarde à discussão do aborto, e surge em confissões cuja explicitação total é travada por um último reduto de pudor quando Alfredo escreve “o meu P. tem saudades tuas”. “Quando começámos a trabalhar essa parte final do aborto”, admite Joaquim Horta, “em que ela é muito descritiva, tivemos muitas dúvidas e começámos a sentir que estávamos a entrar demasiado na vida destas pessoas que existiram. E depois houve um dia em que a Rita [Maltez, organizadora dos textos] trouxe as cartas verdadeiras e tivemos aquele baque de ver mesmo as cartas, a letra. Mas estamos a tentar que tudo isto seja mais universal do que o material em específico.”

Até porque se são as cartas que alimentam a maior parte do espectáculo, os actores desembainham das suas próprias histórias pessoais, para que o foco não abrase apenas a intimidade do casal. Guiados pelo interesse no acompanhamento da história de amor de Alfredo e Maria de Lourdes, encenador e actores foram igualmente lembrados de inquirir sobre as histórias que lhes deram origem, desenterrando episódios familiares que muitas vezes não se tinham lembrado de perguntar, como saber em que circunstâncias os pais se conheceram e como a sua relação evoluiu.

Joaquim Horta, no entanto, gostava que Amorzinho não morresse na mera “curiosidade de saber como é que era em 1934”. Interessa-lhe a comunicação que se estabelece entre os dois, a forma como a relação parece construir-se precisamente a partir das partilhas epistolares e “como eles vão superando as crises de traições, de ciúmes, como vão sempre falando sobre isso – hoje em dia tudo tem um enquadramento de ruptura, não há argumentação”. O afastamento físico devido ao trabalho de Alfredo – alguém “mais dissimulado e malandro, não tão ingénuo” – em Lisboa ou no Funchal, enquanto Lourdes permanece em Setúbal, faz com que a correspondência seja o veículo primordial do amor entre os dois, mesmo que ele, por vezes, prefira seguir essa rotina de escrita a deslocar-se até Setúbal durante o fim-de-semana para estarem juntos. E é isso que intriga Horta: “Se calhar hoje temos relações muito mais próximas, mas em que a comunicação é muitas vezes mais superficial do que isto.”

Amorzinho é também o apelo de um malandro que praticou a sua sedução em centenas de cartas e que, afinal, terá sido o principal guardião da correspondência.

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