2012 é o ano zero do cinema português

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Filme do Desassossego é um dos 31 filmes portugueses apresentados no Festival de Cinema do Rio Foto: Raquel Esperança

O Brasil não é a solução, a solução está em Portugal. Retrato devastador da crise feito por cinco produtores e um realizador no Rio de Janeiro.

O momento não é para discursos amáveis. "Estamos à beira de um estado de insurreição em Portugal porque há um Governo e uma população de costas voltadas", atalhou Luís Urbano, produtor de Tabu, filme português de maior impacto internacional em 2012.

Aconteceu quarta-feira, numa conferência de imprensa do Festival de Cinema do Rio de Janeiro, horas antes de Tabu ser exibido. Coincidindo com o Ano de Portugal no Brasil, o festival mostra 31 filmes portugueses e convidou realizadores, produtores e actores.

Além de Urbano, na mesa estavam João Botelho, que veio apresentar o seu monumental Filme do Desassossego, e mais quatro produtores: Alexandre Oliveira (Filme do Desassossego), Dario Oliveira (oito curtas para o Festival de Vila do Conde), João Figueiras (A Última Vez Que Vi Macau, de João Pedro Rodrigues/João Rui Guerra da Mata) e Maria João Mayer (República de Mininus, do guineense Flora Gomes).

A directora do festival, Ilda Santiago, começou por dar a palavra a Luís Urbano para que falasse de Tabu, parceria portuguesa (50 por cento) com Brasil, França e Alemanha. "É talvez o filme português mais vendido de sempre", anunciou ele. "Eu já tinha estruturado uma co-produção europeia mas queria estendê-la ao Brasil. O [realizador] Walter Salles era um fã do filme anterior do Miguel, mas estava a desmantelar a [sua produtora] Videofilmes." Então sugeriu a Gullane. "Só quando o Fabiano [Gullane] descobre que sou corinthiano, e ele é Palmeiras [clubes de futebol paulistas], é que a coisa tremeu", sorriu Urbano.

A parceria "foi um sucesso". Portugal "estava a entrar numa crise terrível e acabou por ser o Brasil a acarinhar o filme, a encará-lo como brasileiro, o que permitiu a presença em Berlim com muita força." Porque do lado português não havia dinheiro para apoiar deslocações. "Tabu é um case study de como uma co-produção pode funcionar. Fazer este intercâmbio para quebrar o gelo e encontrar no Brasil a minha alma gémea [de produtor]."

Maria João Mayer explica que Flora Gomes não veio ao Rio porque está a trabalhar na Guiné. Lembra que a sua primeira co-produção com o Brasil foi há 10 anos, A Costa dos Murmúrios, de Margarida Cardoso, cujo próximo filme será também em parceria brasileira, incluindo a equipa e a actriz Irene Ravache. A receptividade do mercado tem sido boa. "Já fiz umas oito co-produções com o Brasil."

Vendaval Botelho

Com uma energia que só será surpresa para os jornalistas brasileiros presentes, segue-se João Botelho: "Há 20 anos, vim ao Rio com Um Adeus Português. Lembro-me de ter feito um discurso e ninguém perceber uma palavra." Promete abrir as vogais, mas continua veloz: "O Filme do Desassossego é importante para mim e para os portugueses. Também gostava de fazer Machado de Assis. A seguir vou fazer Os Maias e gostava de co-produzir com o Brasil. Obrigada ao Brasil, à Ilda Santiago que me levou a dançar ao Rio Scenarium [clube na Lapa]. Nós estamos em crise, vocês só vão estar daqui a 30 anos."

Alexandre Oliveira, seu produtor, conta como Filme do Desassossego deu a volta a Portugal. "Comprámos um projector e corremos os cine-teatros do país. Recuperámos o glamour além das pipocas, a ideia de que as pessoas se vestem para ir ao cinema. Correu bem. E depois o João Botelho meteu-me nesta embrulhada dos Maias. Mas acreditamos que pelo amor que existe a Eça é uma aventura para compartilhar [com o Brasil]."

A grande retrospectiva de um português no festival (além das curtas e médias-metragens de Oliveira) é a dedicada a João Pedro Rodrigues, obra completa. No momento desta conferência de imprensa ele ainda não chegou. João Figueiras, seu produtor, revela que está a iniciar duas co-produções com o Brasil, O Ornitólogo, próximo filme de João Pedro, e um documentário de João Garção Borges. No caso de João Pedro, como o filme se passa todo em Portugal, a colaboração brasileira será com meios técnicos e promoção. "Espero que a burocracia ajude. No Brasil, é um pouco complicada. E, quem sabe, daqui a dois anos estou a fazer Os Lusíadas em co-produção..."

Dario Oliveira, director do Festival de Vila do Conde, explica as oito curtas que veio mostrar. "Este ano [20.º aniversário do festival] aventurámo-nos na produção com 12 curtas, uma por mês, nem sei como estou aqui com oito. A Ilda convidou-nos a apresentar os que já estivessem prontos." Incluindo quatro portugueses: João Canijo, Graça Castanheira, Pedro Flores, Luís Alves de Matos. "Só conseguimos produzir 12 filmes num ano porque funcionou como uma escola, com equipas muito jovens. Todos os realizadores gostaram muito de trabalhar com eles. Mas em Portugal não há emprego, alguns vão emigrar. Espero que fiquem lá todos."

O projecto também significou "desviar a produção para norte, porque as produtoras estão todas em Lisboa", diz Dario, explicando que o festival ajudou à Geração Curtas, da qual saiu, por exemplo, Miguel Gomes. E "Tabu é provavelmente o filme mais bonito do cinema português desde que apareceu um senhor chamado Manoel de Oliveira", elogia.

Uma jornalista brasileira quer saber da crise, da nova Lei do Cinema, se o Brasil pode ser a solução. "Não acho que o Brasil seja a solução", responde Luís Urbano. "O cinema português tem de ser feito lá, para contar histórias em português de Portugal. Parceria é alargar um campo de recursos. Mas [ver o Brasil como a solução] é uma ideia perigosa, a que me oponho, e que vigora no Governo português, que nos incentiva a emigrar para não pesarmos no orçamento. A salvação do cinema português passa por Portugal. A nova Lei do Cinema é boa, muita gente nesta mesa trabalhou nela, vai entrar em vigor na próxima segunda e aguarda regulamento para se aplicar. Tentamos que 2013 não seja igual a 2012, com zero de apoio à distribuição, produção, redes alternativas de exibição, participação em festivais. A nossa expectativa é que 2013 seja o primeiro ano da recuperação do cinema português." Numa Europa do Sul em revolta, "os dirigentes têm de ganhar juízo porque estão a brincar com o fogo", e Portugal é parte disso. "A lei precisa de estabilidade, senão vai ser um desastre."

Opção de civilização

João Botelho lembra o pós-II Guerra Mundial, quando um ministro inglês propôs cortar na cultura: "Churchill respondeu: 'Então ganhámos a guerra para quê?' Quando há crise, deve-se apoiar a cultura, a educação. Estamos à beira de uma grande revolta. Pela primeira vez houve grandes manifestações e eu senti-me livre e feliz. O cinema, o teatro são de cada país." O que não exclui parcerias. "Haver um produtor brasileiro faz com que um filme passe no Brasil, e ninguém faz filmes para os meter na gaveta. O cinema português é muito barato, muito precário, mas não tem par." Aponta José Pedro Ribeiro, sentado entre os jornalistas. "Vocês têm ali o presidente do ICA [Instituto de Cinema e Audiovisual]. Nem sei se vai haver dinheiro para comer, quanto mais para o cinema."

Alexandre Oliveira fala do milhão que saiu à rua. "Estamos aqui com esta calma, mas em permanentes SMS." Dario reforça: "A credibilidade da cultura portuguesa passa pelas pessoas que estamos aqui a representar e isso está comprometido. Para todos nós é uma honra ter tão grande número de filmes aqui. O cinema representa Portugal como nenhuma outra forma. E nunca esteve em tão boas condições de o poder afirmar. Os filmes portugueses têm de estar sempre dentro de malas [para viajar]. Somos um país pequeno com uma cinematografia poderosa, imensa. E o que se está a mostrar agora é o resultado de um trabalho que já aconteceu."

Urbano pega no mote. "Para o ano, ou daqui a dois, a Ilda vai-se aperceber de um vazio. O que se apresenta este ano resulta da captação anterior. Em 2012 não houve editais [concursos]. Em 2013 e 2014 isso vai-se notar. E sobre o canal público, a RTP, paira a privatização. Era um canal que ajudava a produção independente, e até isso nos tiraram. 2012 é o ano zero do cinema português, em que técnicos e artistas não tiveram trabalho. E é um dos anos mais brilhantes da safra do cinema português, que será obrigado a muita criatividade para não desperdiçar uma energia potentíssima. Não podemos deixar que Miguel Gomes, João Botelho, João Pedro Rodrigues ou João Salaviza parem de filmar."

Alexandre acrescenta: "Nem sequer temos a alternativa do mecenato." Dario lembra: "E deixámos de ter Ministério da Cultura. Era melhor estarmos aqui todos de luto."

Um jornalista alemão quer saber se a crise não acabará por ser boa, por obrigar a sair, mudar de ares, buscar alternativas. "Então o Estado investe na formação dos artistas e depois desafia-os a emigrar?", contesta Alexandre. "É péssimo negócio." Dario recusa a ideia de que se gasta de mais com cinema. "O investimento do Estado é tão pouco que é o melhor dos negócios." Luís Urbano ressalva: "Portugal não tem dimensão para uma indústria. Existe um cinema que precisa de recorrer ao modelo industrial, mas não uma indústria. É uma opção de civilização. Apostar em cinema português é apostar em identidade, cultura, memória de um país. O cinema é a única forma de conjugar imagens e sons para o que é a memória de um momento de um país."

"Temos muito jeito para a poesia, menos para a prosa", resume Botelho. Quando o PÚBLICO lhe pergunta se pensa captar este momento, responde que "adorava fazer a história da Ongoing". Mas no seu Eça cabe tudo: "Estamos a tirar aos pobres para dar aos ricos. Depois dos Maias, Portugal entrou na bancarrota e demorou 99 anos a pagar as dívidas. O que dizem os políticos é igual. É só tirar-lhes os bigodes, porque não gosto de beijos com bigode. Pegar num texto que é um clássico e tirar-lhe várias camadas que permitam perceber o que é Portugal hoje."

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