140 obras para contar uma História de mulheres

350 anos de alianças em que a história de Espanha se vai cruzando com a de Portugal e em que infantas de um e de outro lado eram um capital estratégico. Gulbenkian mostra agora que alguns destes casamentos por conveniência deram em histórias de amor.

O retrato de Isabel, a Católica, abre a exposição
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O retrato de Isabel, a Católica, abre a exposição Daniel Rocha
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A nova exposição da Fundação Gulbenkian, A História Partilhada. Tesouros dos Palácios Reais de Espanha, vai de Isabel a… Isabel. A primeira, talvez a mais icónica das rainhas de Espanha; a segunda, uma infanta portuguesa que chegou a Cádis vinda do Brasil para casar com o tio. A primeira é Isabel, a Católica, a segunda, Isabel de Bragança, a princesa delicada e culta a quem em boa parte se deve a criação do Museu do Prado. E pelo meio há ainda outra Isabel, a de Portugal, filha de D. Manuel, poderosa imperatriz, e “certamente uma das mulheres mais bonitas de todas as cortes europeias”, garante um dos comissários, Álvaro Soler del Campo.

Uma História de mulheres, portanto. E uma História que se escreve, a avaliar pelas 140 obras agora expostas em duas galerias da fundação, na sua esmagadora maioria pertencentes ao Património Nacional de Espanha (PNE), com o que de melhor os artistas e artífices europeus tinham para oferecer, da Idade Média ao século XIX. Retratos de reis e tapeçarias com cenas bíblicas, armaduras feitas à medida e relicários sumptuosos, esculturas devocionais e livros de horas com iluminuras preciosas onde se registam os nascimentos de príncipes e princesas ao longo de gerações, secretárias com gavetas escondidas e cadeiras de salão com aplicações em platina e bordados franceses.

Dividida em seis grandes núcleos, A História Partilhada está longe de ser uma amostra do que se poderá ver no Museu das Colecções Reais, que deverá abrir em 2016 e que já criou grandes tensões entre o Património Nacional, instituição responsável por mais de 150 mil obras de arte e dezenas de edifícios, e o Prado (o PNE queria levar para o novo museu algumas das jóias da pinacoteca espanhola que lhe pertencem, como as pinturas de Jheronymus Bosch). O que está em Lisboa, garantem os comissários – João Castel-Branco Pereira, o ainda director do Museu Gulbenkian (abandona funções a 10 de Novembro), Soler del Campo e Pilar Benito García, conservadores do PNE – é uma exposição que documenta, através da arte, a complexa teia de alianças familiares que, durante séculos, uniu Espanha (as dinastias dos Trastâmaras, Habsburgos e Bourbons) e Portugal. Uma teia baseada, muitas vezes, em trocas de princesas.

O cavalo de Velázquez
Antes de entramos na exposição em que iremos encontrar obras de Tintoretto, Caravaggio, Ticiano, Mengs, El Greco, Juan de Flandes e Goya é no grande Cavalo Branco de Diego Velázquez que reparamos. A pintura com mais de três metros de altura domina o foyer e causa estranheza por representar um cavalo selado, mas sem cavaleiro. Foi encontrada no atelier do pintor à data da sua morte e é o “cartão de visita perfeito” para Uma História Partilhada, que nos fala de arte, mas também, e sobretudo, de política. “Por tradição, o retrato equestre está ligado à propaganda dos monarcas e a um discurso de poder. Neste temos a vantagem de poder imaginar montados muitos cavaleiros”, brinca Soler del Campo.

Um retrato de Isabel, a Católica (autor desconhecido, c. de 1500) marca o início do percurso. Hão-de seguir-se, além das isabéis já referidas, Mariana Vitória de Bourbon, Joana da Áustria e Maria Bárbara de Bragança. A última, casada com Fernando VI era “uma rainha cultíssima, que estudava cravo e encomendava música”, conta  Pilar Benito García, apontando para alguns dos livros pautados da sua biblioteca pessoal.

Maria Bárbara, filha favorita de D. João V, a quem escrevia longas cartas, foi uma das princesas “exportadas” por motivos políticos, mas o seu casamento por conveniência transformou-se numa história de amor, garante a comissária: “Ela e Fernando VI eram muito apaixonados. Para que pudessem ser sepultados juntos e assim ficassem para a eternidade – no panteão real só podiam ser enterradas as rainhas que tivessem sido mães de reis -, Fernando VI mandou construir, até, um convento.”

De Joana de Áustria, por exemplo, há uma pintura de Alonso Sánchez Coello (c. de 1560), em que a mãe de D. Sebastião parece ainda muito jovem. O rei português está também representado num dos retratos que a rainha mandou fazer para poder vê-lo crescer. “O pai de D. Sebastião morre um mês antes de ele nascer e a mãe parte para Espanha pouco depois. A última vez que Joana está com o filho D. Sebastião tem apenas quatro meses.”

Se é verdade que a exposição é atravessada por muitas mulheres, também é verdade que é com Filipe II de Espanha, I de Portugal (1527-1598), que o coleccionismo da casa real se altera.

O grande coleccionador
Filipe II tinha legítimas pretensões ao trono português, lembram o historiador Fernando Bouza, que assina um dos textos do catálogo, e Castel-Branco Pereira. Tudo porque era filho da imperatriz D. Isabel de Portugal (1503-1534) e herdeiro da Casa de Avis.

“Esta exposição não mostra apenas a estratégia de protecção do património e o gosto coleccionista da casa real espanhola – algo que cá não tivemos -, contraria também a ideia, que não é só popular, de que os Filipes estiveram cá ilegalmente durante 60 anos [1580-1640]. E de que foram péssimos reis para Portugal”, diz o director do Museu Gulbenkian. É claro, admite, que houve violência e exageros, nomeadamente com o duque de Alba, que Filipe II prontamente castiga, lembra Soler del Campo, mas houve também um “enorme desejo de proteger os portugueses”, acrescenta o comissário português: “Creio que ele queria, genuinamente, vir conhecer a terra da mãe, de quem tinha uma memória muito viva porque ela morre quando ele já tinha mais de dez anos. E depois vive cá dois anos e meio quando não precisava, escreve cartas deliciosas às filhas adolescentes falando de Lisboa, manda construir [o Mosteiro de] S. Vicente de Fora e restaurar o túmulo de D. Afonso Henriques… Há aqui um respeito quando o rei que é visto como espanhol dá mais autonomia a Portugal do que a Aragão, que lhe é muito mais próximo.”

Protótipo do rei espanhol, “mesmo para os espanhóis”, segundo Álvaro Soler del Campo, Filipe II é muito mais português do que pensa a maioria, diz, lembrando algumas ramificações da sua árvore genealógica: “A avó era filha de portugueses, a sua mãe era portuguesa e o seu pai [o imperador romano-germânico Carlos V, I de Espanha] também era neto de um português. Havia nele um certo carinho pela terra da mãe, sempre muito presente quando ele estava a crescer, ao contrário do pai. Quando o duque de Alba entra em Portugal a matar ele repreende-o dizendo que aqueles que dizima são irmãos e não hereges, por oposição aos protestantes do norte da Europa.”

Independentemente das interpretações históricas que possam fazer-se sobre as ligações de Filipe II a Portugal, o que não pode ser negado, segundo Soler del Campo e Pilar Benito García, outra das comissárias, é que com o filho de Carlos V e de Isabel de Portugal o coleccionismo da corte espanhola muda radicalmente. Como? O pai reunira, na tradição do avô, o imperador Maximiliano I, o que de melhor havia no vasto território que administrava, com impressionantes tapeçarias das manufacturas da Flandres, retratos de Ticiano (na exposição de Lisboa há uma cópia de uma obra do italiano feita por Juan Pantoja de la Cruz) e exemplares de armaduras e escudos de inspiração clássica (numa das vitrinas há um complexo broquel em que Carlos V aparece vestido como um imperador romano). Mas a sua colecção, se assim lhe podemos chamar, tem uma particularidade – é muito pragmática porque os retratos do imperador, por exemplo, têm uma função propagandística e as restantes peças são para usar e necessariamente de pequeno formato porque a capital do império é itinerante: “Os retratos de Carlos V, os seus oratórios de batalha e os seus tapetes atravessavam a Europa de cavalo e de mula porque a capital era onde ele estava, fosse a combater ou não.” Com Filipe II, que deixa de ser imperador e passa a rei de Espanha, fixando a capital em Madrid, e com o testamento do pai, que lhe deixa boa parte das obras, nascem as colecções reais.

“Carlos V é ainda um imperador de mentalidade medieval, o seu filho é já um rei renascentista. O Escorial [amplamente representado na exposição], que é muitíssimo mais do que um mosteiro – e um edifício totalmente moderno, complexo, com uma parte religiosa, um palácio e uma biblioteca maravilhosa -, é o reflexo de uma outra maneira de pensar, é um testamento de espírito.”

O coleccionismo de Filipe II é continuado pelos restantes reis de Espanha e encontra em Isabel de Bragança, que morre com apenas 21 anos, uma forte aliada. No final da exposição, em que se podem ver duas pequenas pinturas de Francisco de Goya vindas do escritório privado do actual rei de Espanha, a rainha aparece retratada duas vezes. Na mais pequena das pinturas, tem nas mãos os planos para o Museu do Prado, que fundou mas já não viu concluído.

“O extraordinário mecenato artístico de Filipe II constitui um dos episódios principais da história do coleccionismo de arte na Europa moderna”, escreve o historiador Fernando Bouza. “De certa forma, a portuguesa D. Isabel de Bragança ajudou a preservar esse mecenato.”

A exposição termina a 25 de Janeiro.

 

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