Uma ópera ajuizada

El Público exibe momentos de grande beleza

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Teatro Real /Javier del Real

O Teatro Real, em frente ao Palácio Real de Madrid, é a menina-dos-olhos da burguesia castelhana. Mesmo depois de duramente castigado pelos cortes no financiamento público, consegue ter, graças ao mecenato, um orçamento anual equivalente ao do Teatro La Monnaie em Bruxelas (cerca de 44 milhões de euros); casa de ópera onde o seu anterior director, Gérard Mortier, primeiramente se tornou conhecido pelo arrojo das suas apostas artísticas.

A presente partitura é mais um fruto da visão de Mortier: criação contemporânea baseada na recuperação de um texto teatral de vanguarda, El Público, do famoso poeta e dramaturgo espanhol do século XX, Federico García Lorca. Mobilizou-se para tal muito do que há de melhor em Espanha (compositor, libretista, maestro, artistas de flamenco), na Áustria (grupo instrumental, engenheiros de som), na Alemanha (cenógrafo, iluminador) e nos Estados-Unidos (encenador e coreógrafo), para além do coro da casa e de uma equipa internacional de assistentes e de solistas.

O resultado é de um profissionalismo difícil de superar. Mas poderá a energia de Lorca, tão bem enquadrada do ponto de vista técnico, obter uma projecção fecunda perante um público tradicionalmente conservador? Curiosamente, as clareiras deixadas na plateia, após o intervalo, pelos mais insatisfeitos ou chocados de entre os assistentes, foram bastante esparsas. Na verdade, esta ópera é um espectáculo coerente, rico, variado, surpreendente — e bastante gay — mas no fim de contas, muito ajuizado.

Para isso contribuem duas decisões solidárias do libretista e do compositor: o respeito geral pela forma como Lorca nos deixou o texto, e a vontade de valorizar, na sua execução, a clareza declamatória. Ambas decisões são individualmente virtuosas, mas entrelaçadas, têm o efeito de estender demasiado a ópera (duas horas e meia) e impedir a exploração polifónica do material, que lhe poderia conferir uma maior profundidade expressiva.

Mauricio Sotelo é mais simbolista que expressionista. A irracionalidade é por ele simbolicamente atribuída à irrupção do flamenco, e com isso, descarta-se da necessidade de a figurar por música inteiramente sua; música essa que submete a um rígido controle, aprendido na escola germânica; controle este que apresenta como garante de validade estética.

O flamenco surge como plataforma de entendimento entre diferentes mundos sonoros, rugosidade calculada e reserva retórica; mas aparece com a própria racionalidade, mais estreita do que a do seu entorno. Não há momento em que a opção apolínia de Sotelo seja mais notória do que a introdução de uma dança flamenca no exacto momento em que a lascívia entre Julieta e os cavalos prepara um clímax: a bomba musical é desarmada, para alívio do público burguês, por uma coreografia eivada de convencionalismo.

Usando uma imagem de Lorca, é como se o compositor tivesse tido medo de que, ao arrancar a sua máscara de protagonista no sistema de produção musical hegemónico, viessem agarrados os seus intestinos. Contudo, embora recuse o expressionismo dionisíaco, Sotelo é um compositor sensível, atento aos matizes emocionais, com um sentido agudo da cor, do movimento e da proporção.

Para além de incorporar com mestria, tornando compatíveis, referências culturais e tipos de emissão sonora originalmente díspares, El Público exibe momentos de grande beleza, por exemplo, no segundo quadro (Tangos lentos), diálogo entre Figura de Cascabeles e Figura de Pámpanos; no terceiro, em particular a longa ária de Julieta (perto de cem compassos); e no eco coral de "un mar de tierra blanca", no final do quarto quadro (não consta do original).

A produção da ópera conta, para além disso, com intérpretes excelentes: não apenas os artistas de flamenco, mas também, entre muitos outros, os barítonos José António Lopez (Director), Thomas Tatzl (Homem 1º) e a jovem Isabella Gaudí (Julieta). A cenografia (Alexander Polzin) é económica e eficaz, com figurinos apropriadamente estapafúrdios (Wojciech Dzidzic), e uma encenação milimétricamente cuidada e expressiva (Robert Castro, com o coreógrafo Darrell Grand Moultrie). O público, ajuizadamente, pode apostar nestes cavalos.
 
O crítico esteve em Madrid a convite do Teatro Real

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