Judas não traiu, acreditou demais. Isto é uma provocação?

A partir da figura de Judas enquanto símbolo de traição, o escritor israelita Amos Oz constrói um romance “provocador para judeus e cristãos”. Judas é uma história sem santos nem vilões que convoca cada leitor a reavaliar posição e emoções. Aqui tudo está em forma de uma grande pergunta

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THOMAS LOHNES/AFP

Na origem do romance não houve uma ideia. “As ideias são para os ensaios. No romance, há antes de tudo, uma personagem e é a partir dela que tudo se constrói e as ideias surgem”, afirma Amos Oz, 76 anos, israelita, escritor a cada ano mencionado como possível Nobel, autor de uma obra onde reflecte acerca da condição de ser judeu e, sobretudo, de ser um habitante do estado de Israel. Às quatro da tarde em Jerusalém, onde vive, depois de um dia de escrita à secretária, “a imaginar que é outra pessoa”, e que começou como todos os dias, bem cedo, antes do sol nascer, com uma caminhada de meia hora, seguida de uma chávena de café, Amos Oz falou ao telefone do seu último romance, Judas (D. Quixote)

É um livro que lança a discussão sobre um dos maiores dogmas da História: Judas, o traidor. Em finais de 1959, início de 1960, Samuel Asch, jovem revolucionário, admirador de Che Guevara e dos ideais socialistas, enfrenta uma crise pessoal. A namorada abandona-o e a sua família entra em falência deixando de lhe pagar a universidade onde começara preparar uma tese sob o tema “Jesus visto pelos judeus”. Há um sonho onde Samuel encontra Estaline e é incapaz de lhe explicar “porque é que os judeus rejeitaram Jesus e porque é que ainda insistem e persistem em lhe virar costas”. Quando pensa ir embora de Jerusalém e procurar uma alternativa de vida, encontra um anúncio num placard da faculdade. Procurava-se um estudante para fazer companhia durante algumas horas a um velho que gostava de conversar. Em troca, oferecia-se alojamento, refeições e um magro salário. Foi assim que Samuel se viu chegar a uma casa meio misteriosa numa rua estreita da cidade, onde além do velho Gershom Wald, vivia Atalia Abravanel, uma mulher de 45 anos, atraente, amarga, por quem Samuel sente atracção imediata que se torna em paixão impossível. Os três estranhos passam a partilhar um espaço habitado por fantasmas e ideias muito divergentes que servem a Oz para expor a complexidade de argumentos que podem justificar as posições mais extremadas sobre o mesmo assunto: Israel.

Estamos sempre diante de uma possibilidade e do seu contrário sem que isso soe a uma exposição política, ou simples esgrimir de argumentos. O que se expõe é a condição humana, explicará nesta conversa onde rejeita, como se depreende da leitura do romance que se desenvolve à volta da relação entre estas três personagens, a noção de que há bons e maus. Isso não existe. Na história de Israel nem na história dos homens. A história da traição de Judas talvez tenha sido afinal a de um crente que não resistiu ao momento em que a sua fé foi posta à grande prova. Quando Jesus, na cruz olha o céu e pergunta: “Meu Deus porque me abandonaste?”, Judas percebeu que também ele estava sozinho e enforcou-se. Talvez tenha sido isto. Em Judas há mais perguntas do que respostas. Isto não é um manifesto. É uma grande pergunta em tom de provocação…

…que começou com a figura de Samuel Asch, o jovem palavroso e de lágrima fácil, ateu, que acha que o mundo se pode salvar através da revolução
É uma personagem muito contemporânea. Samuel Asch muda do decurso de três meses e meio. Cresce de um adolescente entusiasta e idealista para um homem maduro, cheio de perguntas, dúvidas, céptico. Tudo aqui se constrói à volta de uma ideia: mudar. A última frase do romance é uma pergunta, uma pergunta que Samuel coloca a si mesmo. Este é um romance cheio de perguntas e com muito poucas respostas. Não pretende dizer às pessoas o que fazer, ou como votar. A intenção é fazer pensar e sentir.

E a partir de um dogma do Cristianismo: Judas, símbolo da traição.
A figura de Judas é o Chernobil do Cristianismo e do anti-semitismo nos últimos dois mil anos. Para milhões e milhões de cristãos cada judeu é um Judas, e ser judeu significa ser um traidor ou um assassino. É o cliché anti-semita mais comum. Se vir bem a representação da figura de Judas na arte do Renascimento vê o estereótipo aplicado à cultura nazi anti-semita. Isto está muito enraizado. O meu protagonista reavalia toda a história de Judas, dos 30 dinheiros, e o beijo mais famoso da história, mais famoso do que o beijo entre Romeu e Julieta. O beijo do traidor. A versão de Samuel é diferente. Segundo ele, Judas não só não traiu Jesus, mas acreditava em Jesus mais do que o próprio Jesus acreditava em si mesmo.

Há uma dúvida essencial no livro. O que seria a história do judaísmo se Jesus, um judeu, tivesse sido aceite pelo seu povo.
É um se… (pausa) Nenhuma das minhas personagens é um doce de pessoa. Não me interessa esse tipo de personagens. Há três protagonistas vivos e quatro fantasmas e nenhum é boa pessoa a não ser Jesus. Jesus, neste romance, é muito querido. Mas apesar de nenhum ser querido no fim todos se tornam um pouco mais “amáveis”.

E todos sabem o que é trair, embora a designação de traidor se aplique sobretudo a Abravamel, pai de Atalia.
Judas era olhado como traidor mas era profundamente crente. Abravamel também é olhado como traidor, mas estava muito comprometido com o seu ideal. Como muitos idealistas, é incapaz de amar os seus familiares mais próximos. Isso acontece. Grandes idealistas, grandes crentes na solidariedade humana não são capazes da solidariedade com quem lhe é mais próximo. A grande analogia não é entre Judas e Abravamel, mas entre Abravamel e Jesus. Os dois acreditam no amor universal, que todos os homens podem ser irmãos. As outras personagens são um pouco mais cépticas.

Estamos num romance de solitários, de gente só.
Sim. Sobre pessoas solitárias a quem acontece um pequeno milagre. Não é um milagre de ressurreição nem de sobrevivência universal. Três personagens muito diferentes que no início são totalmente estranhos entre si e se vão aproximando. Este é o milagre secular de Judas.

Podemos ler nisto muitas coisas. Escreve no livro, palavras de Samuel para o velho céptico que o interpela sobre o ódio dos árabes a Israel: “diga-me por favor se existirá no mundo um povo capaz de receber de braços abertos uma súbita invasão de centenas de milhares de estranhos, seguidos de milhões, que aterraram aqui de longe, com o argumento bizarro de que os livros sagrados que trouxeram consigo lhes prometem a eles e a eles só todo o país?”
Sim. Cada uma destas pessoas pensa coisas diferentes e eu estou do lado de todas. É um erro ouvir um quarteto de cordas e perguntar ao compositor se se identifica mais com o violino, o violoncelo ou o contrabaixo. Enquanto autor não estou do lado de ninguém e ao mesmo tempo estou do lado de todos. Tento torná-los tão convincentes quanto posso, enquanto grupo e indivíduos que discordam entre si. Mais uma vez porque este romance não é um manifesto. É uma história e uma provocação. É uma provocação para os judeus de Israel, para os cristãos, para toda a gente. Se eu quisesse fazer declarações ou enunciados políticos não gastaria cinco anos da minha vida a escrever um romance. Escreveria simplesmente que é preciso lutar por uma solução de dois estados, por um compromisso histórico entre Israel e a Palestina, pela coexistência. São declarações simples que tenho feito ao longo da minha vida. Mas não gastaria cinco anos para enviar a mensagens do tipo: por favor, sejam bons uns para os outros, ou parem de lutar. Seria um desperdício. Este romance não é para enviar mensagens. É sobre a condição humana. É sobre solidão, amor, desejo sexual, saudade, perda. É sobre todas essas coisas simples e grandiosas, coisas que cada um de nós experimenta.

E sobre isso fala de três escritores no mesmo parágrafo: Thomas Mann, sobre o amor e o ódio; Gogol, o grande sábio da condição humana, e Tolstoi, recomendado para sonhadores, como Samuel.
Eram adequados para aquele ponto da conversa entre Wald e Samuel. Acontece estarem entre os meus escritores favoritos.

Atalia é um personagem feminina muito forte, sobretudo se pensarmos que estamos em 1959. Como chegou a ela?
Em muitos aspectos Atalia está à frente do seu tempo. É uma mulher de agora, livre em todos os aspectos. Sexualmente, emocionalmente, ideologicamente. Está muito zangada. Zangada com a totalidade do sexo masculino. Acha que os homens têm vindo a controlar o mundo há milhares de anos e tornaram-no um jogo sangrento. Pensa que os homens são eternos adolescentes, que nunca amadurecem, sempre dependentes do permanente fluxo de sucesso. Que não têm qualquer sentido de moralidade a não ser nos pequenos intervalos em que a sua pulsão sexual é satisfeita.

Ainda Abravamel, o idealista. Ele defendia que no futuro seria a língua e não a fronteira física a determinar a identidade dos povos.
É uma ideia muito nobre e atraente; um mundo feito de muitas línguas diferentes e dialectos e tradições e sem fronteiras, sem exércitos. Mas será que a humanidade consegue suportá-la? Não sei.

A linguagem pode ter esse poder de unificar?
Unificar é uma palavra enorme. A linguagem pode tocar as pessoas, emocioná-las. Pode motivar, fazer mexer. As palavras podem fazer as pessoas rever as suas posições, reavaliarem-se nas suas emoções e sentimentos. É o que tento fazer, usar palavras de modo a que as pessoas reconsiderem, que tentem sentir de um modo diferente.

E em toda a sua obra vai à génese das palavras.
Trato a linguagem como um músico trata a música. Não é apenas um meio de comunicar ou de enviar mensagens. É um meio de fazer sentir, de pôr a imaginar, de fazer identificar com as personagens. Também aqui criei uma linguagem diferente para cada uma das personagens, para os vivos e para os fantasmas, ou para os mortos. Como lhe disse, para mim isto é um concerto de música de câmara. Um pequeno número de instrumentos, cada um a tocar a sua linguagem, tentando a harmonia.

Enquanto ensaísta, e também enquanto romancista mesmo quando diz que não escreve manifestos, a política está sempre presente, e tem falado muito do papel do intelectual, do seu dever de intervir. O que o move?
Uma enorme curiosidade acerca das pessoas. Desde muito pequeno era muito curioso, tentado perguntar a mim mesmo o que sentiria eu se fosse ele? O que sentiria se fosse ela? O que faria, por que esperaria? Que tipo de impressão gostaria de deixar nos outros? De que me envergonharia? É um jogo que tenho vindo a jogar há muito muitos anos.

Passaram mais de 50 anos desde a acção deste livro, a sua idade corresponde mais ou menos à idade de Samuel. Muitas coisas aconteceram desde então em Israel, mas uma permaneceu: a guerra.
Sim. (Pausa) 50 anos é muito tempo na vida de uma pessoa, mas não é na História. Já assistimos a conflitos com esta extensão entre nações, ou mais longos. Olhe-se para a história da Europa. Centenas de anos de conflitos sangrentos. Massacres, genocídios. Apesar de tudo a Europa parece estar mais calma. Não Inteiramente. Não na Ucrânia, não nos Balcãs, mas relativamente calma. No Médio oriente talvez precisemos de mais tempo. Acho que mais tarde ou mais cedo o médio oriente vai chegar a algum tipo de equilíbrio. Daqui a quanto tempo? Não sei dizer.

Fala-se no livro do “problema existencial do estado de Israel”.
O estado de Israel nasceu de uma longa tragédia, a tragédia do povo judeu. E a resolução dessa tragédia resultou noutra tragédia para o povo da Palestina. É uma história trágica mas não uma história de homens maus e homens bons, entre vilões e santos. De todo.

Como acha que a literatura israelita está a escrever este tempo?
Se me fizer esta pergunta daqui a cem anos talvez consiga responder. É ler os romances, não como declarações sobre estados mas sobre a condição humana. Os componentes da vida humana são universais. Os conflitos entre judeus, árabes, cristãos estão nos romances, mas mais profundamente estão os componentes básicos da experiência humana. Toda a boa literatura nos transforma em homens e mulheres de outras culturas, de outros países, de diferentes religiões, diferentes tempos e faz-nos sentir em casa em lugares muito distantes. É esse o milagre e a magia da literatura.

Já lhe chamaram muitas vezes traidor.
Muitas. Tendo a olhar isso como uma honra. Tem acontecido a muito boa gente ao longo da História. Quando me chamam traidor sei que estou em excelente companhia. 

Está a escrever?
Estou, mas tenho alguma relutância em falar disso. Quando estou “grávido” não gosto de expor a minha gravidez. Não é bom para o bebé.

O seu nome aparece todos os anos como um candidato ao Nobel. Como lida com isso?
Se morrer sem receber o prémio Nobel não morrerei infeliz. 

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