Adília, no País das Maravilhas

Adília Lopes utiliza certas incidências na sua biografia para se identificar com uma personagem que encarna a sua capacidade de se metamorfosear, de se esticar e encolher

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Adi´lia Lopes: “Sou certamente a Alice no País das Maravilhas.” Miguel Manso

A arte de Adília Lopes aparenta-se com a técnica do objet trouvé. Também ela parece encontrar, ou forçar esse acaso, nos restos da sua própria biografia, da topografia urbana (mormente lisboeta), ou em paisagens bibliográficas, os materiais para os seus poemas. É como uma autobiografia na qual tudo tivesse explodido em redor. Ou uma casa de janelas abertas a correntes de ar ferozes. Mas este é um domicílio que não autoriza esse excesso de domesticidade que Cesariny dizia ser letal. Porque é por entre escombros e detritos de casas e de tempos vividos que se move o sujeito poético. Pelo caminho apanha do chão o que foi arremessado pela fúria do circunstancialismo biográfico ou efabulatório. De O Pequeno Lord, já na infância, “Só havia a capa.” (p.47)

Conforto e confronto, sossego e incómodo. São assim os poemas em Adília Lopes. E para Adília Lopes. Como a autora dizia numa crónica, o “texto, esse abismo e esse sofá”. Numa outra crónica, Adília escreveu: “transcrevo a bela e o senão”. Não é apenas a debatidíssima questão dos jogos de sentido o que aqui está em causa, mas a falsa ingenuidade de um fazer poético. Melhor seria falar em aparente ingenuidade, pois há nesta poesia uma aproximação a certa posição ética que defende uma posição de verdade, que não se compatibiliza com falsidade. Nesse sentido, a implicação da poesia na vivência do sujeito poético que (quase) transparece nos poemas está patente num trecho em prosa que acompanha o seu livro A Mulher-a-Dias (&etc, 2002): “os meus textos são políticos, de intervenção, cerzidos com a minha vida”. Eis uma torção dos parâmetros canónicos que funciona a favor desta poesia que dificilmente podia ser menos política, mas que tanto depende da tensão envolvente – e não precisamos de nos cingir à pólis.

Manhã é um livro de memórias. Não é exactamente habitual que confinem de forma tão explícita o discurso poético e o registo da autobiografia – mas não sem os boicotes que vão acidentando o caminho. Tal como sucedia em Café e Caracol (Contraprova, 2011), Andar a Pé (Averno, 2013) e Variety is the Spice of Life (Telhados de Vidro, 2014), os poemas surgem datados. No caso deste último núcleo, um dos poemas tem, inclusivamente, a indicação da hora. Estas informações, se não são despiciendas em anteriores colectâneas – onde marcam uma certa ideia de veracidade e de registo fiel que acompanha os poemas –, adquirem em Manhã uma importância adicional. É como se os poemas que compõem a mais recente recolha de Adília Lopes revertessem para o registo diarístico, que constitui um paralelo secreto mas sem dúvida fundacional para este universo de escrita. Ao datar de forma tão explícita os poemas, a autora está a outorgar-lhes a possibilidade de agirem como documentos de uma vida. Com tudo o que essa possibilidade tem de inviável e, não há como negá-lo, eventualmente, contraproducente. Porque, como é natural, não são indiferentes a estas considerações a noção de impessoalidade da escrita e a dupla falácia da intenção e do biografismo. E no entanto, um livro como este volta a lidar com a questão da vida transposta para as palavras de uma forma que ainda alicia. Há um poema, chamado Maravilha, que, de forma muito aparentemente ingénua, põe a questão com especial acuidade. De tal forma que acaba por funcionar como uma metáfora para essa condição – “A Condessa de Ségur fala de um livro que não é um livro. Carrega-se num botão a meio e o falso livro abre-se e é uma caixa de tintas.” (p.117) Um poema (em prosa, como o são muitos dos que formam este livro) como este activa, desde logo, um dispositivo que a poesia de Adília tem explorado com a frequência e a consecução que se conhecem. Ao fixar naquela escritora as atenções desta composição, a poeta recua a uma referência matricial da sua poesia – “Devo tudo à Condessa de Ségur.” (p.41), dirá noutro poema –, mas igualmente, como é bem de ver, concentra no território da infância os esforços do poema. Ao fazê-lo, está a reforçar o carácter memorialístico deste registo (no prolongamento de larguíssimas extensões da sua obra) e a eleger essa idade como a o verdadeiro tempo fulcral da sua poética.

Sem obedecer a uma ordenação cronológica estrita – quer na aparição dos episódios seleccionados, quer nas datas que situam temporalmente os poemas –, Manhã revisita passos considerados importantes da vida da autora. Mas sobretudo relê a própria noção de biografia. Porque, como é óbvio, não pode proceder a uma actualização integral desse pressuposto de género literário – sob o risco de comprometer a valia de um livro de poemas. Adília Lopes procede, antes, por uma via pela qual obliqua o seu caminho. Se a analogia pictórica fosse especialmente proveitosa, diríamos que a técnica seria anterior à perspectiva (ou suplantadora dela). Não interessam a estes quadros a profundidade de campo, ou o escalonamento dos planos, mas a disposição quase instintiva de diversos domínios num só fio de representação. Assim, o modo como se apresentam as partes da composição não defende uma harmonização totalizadora. A experiência quase cubista de “Greta Garbo” é um bom exemplo disso mesmo. À parte da ironia que percorre o poema – e que se consolida mais plenamente no final da leitura completa dele –, os elementos não respondem a uma ordem que, por assim dizer, se imponha de fora, mas parecem obedecer a uma lógica intrínseca que despreza qualquer organização estreita – “Sou parecida com Greta Garbo. Durante anos fui muda. Depois Garbo talks. Depois em Ninotchka Garbo laughs. Fico na Ninotchka, Adília laughs. Não quero acabar os meus dias num cantão da Suíça atrás de uns óculos escuros. Era só o que me faltava.” (p.105) Neste poema (aqui citado na íntegra), o cruzamento entre a biografia sumaríssima da diva do cinema com a do sujeito poético dá-se de forma tão selectiva e esquinada, tão intrincada e veloz, que o efeito de derrisão se confunde com a implosão da própria noção de biografia que anima todo o livro. Que parte da vida do sujeito é aqui convocada? Que cronologia lhe poderia dar lugar? Apenas o género é aqui dinamitado. Apenas o efeito biográfico sofre um dos seus abalos mais profundos. E mais interessantes.

Como tantas vezes sucedeu ao longo da sua obra – o primeiro livro da autora, Um Jogo bastante Perigoso (Ed. da Autora, 1985) publicou-se há 30 anos –, a literalidade é um dos principais signos da irreverência da poesia de Adília Lopes. Porque aquilo que estamos permanentemente a interpretar de forma figurada, surge, em todo o seu esplendor, ou em toda a sua trivialidade, como facto textual no poema. Como sucede no poema “A Minha Bisavó”, no qual a passagem do tempo opera a sua transformação erosiva. Neste caso, essa acção recai sobre uma representação religiosa (como no poema “Vazio” ela se dava numa fotografia de bilhete de identidade), ferida na sua integridade pela cruel secularidade do tempo – “Agora a Nossa Senhora parece que está a aquecer as mãos numa fogueira. Não quero ser irreverente.” (p.69) A questão é que o é. E é-o porque, tal como as crianças, que Adília Lopes com tanta frequência – por vezes de forma exasperante – pretende eleger como modelos, diz aquilo que pensa. Ou diz, sem aparente maldade, o literal. Como dirá em Caladryl – uma meditação de tons ambiguamente sombrios, em que avultam colorações garridas que recobrem medicações, a sobrecarga da memória e a artificialidade do que escapa ao mundo biológico –, “Para mim, os nomes são coisas.” (p.88) Numa formulação que lembra a lição de Sophia Adília Lopes fixa nas coisas a sua pena e a sua salvação – “Dou uma importância excessiva às coisas” (p.89).

Adília parece tomar para si a “maravilha” (p.53) dos olhos das moscas. São elas que, em Moscas, encerram o poema, como uma espécie de resumo do voo rasante pelas incógnitas do passado que só algo demasiado exterior e extemporâneo poderia observar. Esses olhos de mosca são os do poeta que se permitiu reviver a infância em poemas de um pormenor quase inverosímil. Mas, assim como “Não há sinónimos.” (p.55), a identificação nunca é perfeita. O que quebra, sem regresso, a possibilidade de executar plenamente a biografia. De resto, não parece ser isso que Manhã se propõe fazer. Pense-se por exemplo, num poema como Geometria Descritiva, para se perceber que este livro não pretende formar uma imagem fiel, mas multiplicar as possibilidades de reflexo. Nele, Adília Lopes utiliza certas incidências na sua biografia (como a oscilação de peso) para se identificar – de um modo com tanto de eficaz como de perturbante – com uma personagem que encarna a sua capacidade de se metamorfosear, de se esticar e encolher, à medida das necessidades do seu recuo e avanço no tempo – “Sou certamente a Alice no País das Maravilhas.” (p.58)

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