A verdade dos vencidos na praça pública

No conjunto das quatro encenações de Nuno Cardoso deste ano, esta produção ficaria fora do pódio. Ainda assim, tanto as interpretações como a realização plástica são acima da média.

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Poucas coisas são mais económicas que uma tragédia grega. Em pouco mais de uma hora, a tragédia fica desfeita. A ação é sucinta e breve, concentrada num único ponto de viragem dos destinos das personagens. Não só isso, como a fábula ecoa nos mais diversos acontecimentos públicos e cada um pode encontrar matéria de reflexão sobre os seus próprios problemas.

Estas e outras razões fazem com que uma peça como Ajax, escrita há 2500 anos, resista ao tempo com vigor e frescura insuperáveis. Ajax, o mais poderoso dos guerreiros gregos depois de Aquiles, sente-se desonrado quando, após a morte do companheiro, as armas de Aquiles são entregues a Ulisses, e jura vingança contra os generais gregos, Agamemnon e Menelau. Opositor dos deuses do Olimpo, em especial de Atena, é levado por esta a massacrar um rebanho, como se se tratasse dos gregos. Envergonhado, comete suicídio. Os generais, ofendidos, impedem a família de fazer os rituais fúnebres e enterrar o corpo. Ulisses, que persuadira Agamemnon e Menelau para ficar com as armas de Aquiles, acaba por convencer os dois atridas a deixar sepultar o herói.

Mérito, versão dos factos e justiça do vencedor são os assuntos da peça sublinhados nesta encenação. Nuno Cardoso encaminha com discrição os actores para o final da obra, quando, já depois da morte do herói, se discutem os seus feitos e desgraças, como num julgamento em praça pública. O encenador, que este ano já encenou Coriolano, de Shakespeare, Demónios, de Lars Noren, e República, com moradores da ilha da Bela Vista, no Porto, ainda arranjou forças para abordar mais uma peça sobre os limites da convivência, desta vez à escala da guerra de Tróia. O cenário evoca uma das praias da Europa, a sul e a norte, onde, ao longo do século XX, desembarcaram em força e/ ou embarcaram em fuga tropas aliadas. A imitação de dunas onde pousam, inusitadas, cadeiras de praia, constitui mais um dos cenários recorrentes dos espectáculos de Nuno Cardoso: solo curvo e irregular; área de lazer e, simultaneamente, confronto; cena de rua que propicia jogo cénico e combate feroz. Os actores já estão habituados, pelo menos uma parte do elenco, presença regular nas produções do encenador. Todos contribuem para concretizar essa ideia de cena, em que a exposição da verdade dos vencidos é feita com violência e agressividade, sempre com noção de que estão duplamente em público: na ficção, perante o coro, e no palco, perante a plateia. Rodrigo Santos, Mário Santos, Micaela Cardoso e António Júlio não vacilam; Afonso Santos, Luís Araújo, João Cravo Cardoso e Júlia Valente dão gosto ver. Os figurinos são impecáveis e a cenografia também, embora a vastidão da praia onde se dá a tragédia pudesse ser melhor evocada se, digo eu, em torno do que se vê, houvesse mais espaço vazio.

No conjunto das quatro encenações de Nuno Cardoso deste ano, esta produção ficaria fora do pódio. Ainda assim, tanto as interpretações como a realização plástica são acima da média, e o encenador mostra bem os muitos e variados recursos conceptuais ao seu dispor. O Teatro do Bolhão e o Ao Cabo Teatro provam ser uma das estruturas que melhor guardam o fogo grego em Portugal.

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