Wang Bing filma a humanidade a sobre­viver no inu­mano

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O cineasta (em baixo) viveu com as três irmãs DR

Three Sisters é um épico: gente obri­gada a transcender-se. Wang Bing mostra à China o que a China não quer ver

"Não vai acontecer. Não me interessa." A pergunta era se Wang Bing alguma vez realizará um filme sobre a classe média chinesa, se alguma vez se interessará pela paisagem urbana, pelas cidades...

A resposta era previsível, mas continuou a ser forte a intensidade penetrante do olhar do cineasta. Sobretudo, o silêncio que se agarrava às palavras. Estava a responder sobre um pacto inquebrável. É que antes, Wang Bing, num breve encontro no Festival de Cinema de Veneza onde o seu último filme, Three Sisters, fez figura de obra maior, falara de algo de irreconciliável: as duas Chinas que se ignoram, a urbana e a rural, o facto de "a maior parte dos chineses não quererem ver... sobre o que se passa fora das cidades. Gostam de ver pessoas ricas, pessoas felizes. Não querem sentir a miséria que se sente quando se vê pessoas em certas condições." Condições como aquelas em que vivem as irmãs de Three Sis­ters (Competição Internacional de Longas-Metragens, hoje, 21h30, Culturgest; dia 27, 15h30, Londres), numa aldeia do sul, Yunan, zona mon­tan­hosa onde, por causa da alti­tude, não é possível culti­var cereais, onde as batatas servem de comida a homens e a porcos.

Three Sisters tam­bém é um filme sobre a forma como Ying, 10 anos, Zhen, 6 anos, e Fen, 4, deixadas sozinhas, porque a mãe abandonou a família e o pai está em trânsito permanente pelas cidades à procura de trabalho, se distinguem dos animais. O mundo rural enterrado vivo pelas promessas do boom económico.

Origem camponesa

Há qualquer coisa de exangue na experiência dos filmes de Wang Bing que resulta do caminho que tem percorrido desde 2003, o ano de Tie Xi Qu: West of the Tracks - estas nove horas sobre o declínio, causado pelo pragmatismo económico, de um complexo industrial de Shenyang que constituira uma das bandeiras do socialismo chinês, foram, na verdade, filmadas entre 1999 e 2001.

Vivendo em Shenyang, e depois de ter estudado fotografia na Academia de Cinema de Pequim, o próprio Wang Bing decidiu iniciar a sua independência profissional, à margem do sistema, registando com uma câmara digital a vida dos trabalhadores desse bairro industrial com os dias contados. A partir daí tem progredido com uma determinação, custe o que custar, de permanecer fiel às pessoas que filma, à sua própria origem camponesa. Isso tem-no levado em direcção à escuridão mais profunda. Deixando em cada rodagem um pedaço da sua vida, da sua energia, porque não pode ser inconsequente - para o realizador, mas, finalmente, não pode ser inconsequente para o espectador - o levantamento e exposição de algo que vive enterrado.

Isso atribui ao cinema de Wang Bing uma dimensão espectral - a mesma, por exemplo, que alimenta o cinema de Pedro Costa com a revelação que tem feito de uma história portuguesa funesta. Essa dimensão era alucinante no filme anterior do cineasta chinês, filme em que "desenterrar o passado" era qualquer coisa de literal: The Ditch/A Fossa, ficção de 2010 sobre os campos de trabalhos forçados da China maoísta, anos 1960, destinados aos "direitistas", que contava a história de uma mulher que procurava no deserto de Gobi a vala onde o cadáver do marido fora enterrado. Wang entrevistou sobreviventes desses campos como documentação e os episódios que narra tinham já sido evocados, num documentário de 2007, por uma octogenária, Fengming, mulher que abraçou a revolução e depois enfrentou processos de deportação (Fengming, Crónica de uma Mulher Chinesa). Em The Ditch, Wang Bing expõe os espectros à luz, figuras em que o humano já só se manifesta de forma intermitente, porque os corpos não aguentam a memória de uma humanidade que habitou neles - o filme só este ano começou a circular internacionalmente, mas estando comprado para Portugal (pela Midas), é uma experiência para já vedada porque a distribuidora não encontra sala(s) interessada(s) nela.

Three Sisters, um épico

Mais eis Three Sisters. Um épico. Não pela duração, 153 min­u­tos, antes pela forma como Wang Bing filma a história íntima como epopeia: gente obri­gada a transcender-se, a humanidade a sobre­viver no inu­mano - as ligações com o cinema de Pedro Costa, mais uma vez, são aqui tácteis. Sobre a aldeia de Xi Yang Tang, aban­don­ada por jovens adul­tos que parti­ram para a cidade, deix­ada aos vel­hos e às cri­anças, aparece uma vaga infor­mação no final, antes do genérico. O que é o oposto do que se faz habitualmente em documentár­ios "sobre...", quando se trata de aparar a posição do espectador. Wang Bing propõe, em vez, a exper­iên­cia pura de uma condição, aquilo que é uni­ver­sal, antes de saber­mos o que a explica ou rodeia especi­fi­ca­mente (o que quer dizer que esta China fala sobre todos nós). E é a forma, também, de só assim aquelas personagens poderem ter direito à sua humanidade.

Wang Bing conta que conheceu esta família - ou o que resta desta família - quando visitava na área os familiares de um amigo que tinha morrido. Foi na Primavera de 2009. Encontrou Ying, Zhen e Fen. "Comecei a falar com elas, aceitaram-me na sua casa, nas suas vidas. Ainda hoje estamos em contacto. Aceitaram-me na sua família e aceitaram que eu as filmasse" - entre Outubro de 2010 e Março de 2011, 180 horas de material, resultado de três incursões. "Sem programa" algum, diz. "Eles viviam a vida deles e eu estava com eles. Não quero dizer às pessoas o que elas têm para dizer. Elas faziam o que queriam. Eu filmava, elas viviam."

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