Universo De Keersmaeker no Rivoli

Um vocabulário complexo que tem, regra geral, princípios simples. Princípios que fazem com que, muitas vezes, de uma única frase coreográfica nasça todo um alfabeto de gestos. No seu universo cabem o rigor e a compulsão criativa, a direcção e o impulso. Anne Teresa De Keersmaeker está de regresso a Portugal. Rosas, a companhia que dirige, troca agora o Centro Cultural de Belém (onde actuou em Outubro) pelo Rivoli Teatro Municipal. Quatro noites de espectáculo e um ciclo de vídeo (a 21 e 22) levam ao palco portuense a qualidade e ousadia de uma formação incontornável no actual panorama da dança europeia. O programa - composto por "Rain" (hoje e amanhã), "Drumming" (20) e "I Said I" (23, no Porto, e 27, em Lisboa, na Culturgest) - testemunha o desejo de experimentação de De Keersmaeker, a sua paixão pelo minimalismo e a importância que atribui às possibilidades de expressão do intérprete.Entre as três coreografias que subirão ao palco do Rivoli existem inegáveis pontos de contacto: "I Said I" (1999) retoma a relação dança/texto que já existia em "Just Before" (1997), o trabalho que vê transformado um dos seus quadros em ponto de partida de "Drumming". "Drumming" (1998), por sua vez, sublinha o paralelismo que existe entre música e movimento, tal como "Rain", a mais recente criação de De Keersmaeker (Janeiro de 2001). As duas últimas têm ainda em comum a música de Steve Reich, um dos seus compositores de eleição."Rain" e "I Said I", as duas estreias nacionais, estão intimamente ligadas a uma estrutura literária, embora essa ligação seja mais evidente em palco num dos casos. A primeira baseia-se numa história homónima da estreante Kirsty Gunn, uma jovem escritora neozelandesa. A segunda toma por princípio orientador "Auto-acusação", de Peter Handke. Quando a companhia trabalhava "In Real Time" (2000) - uma peça que combinava a dança, a música e o teatro através da colaboração da Rosas, do grupo Stan e do quarteto de jazz Aka Moon -, um bailarino levou para estúdio "Rain", mas o texto acabou por não ser utilizado, embora, como explica a coreógrafa num dos artigos que compõem o programa, ele esteja "entranhado nas ideias e nos corpos, como todos os outros materiais que inspiraram 'In Real Time'."A memória dos corpos, no fundo a história de cada bailarino, é uma das matérias-primas de Keersmaeker. Um recurso tão indissociável da sua linguagem como a capacidade de reciclagem de anteriores criações. "Rain" - uma "resposta a 'In Real Time'" - parte da mesma frase coreográfica que deu origem ao trabalho do ano passado. "Esta frase revela ainda mais potenciais variantes, podemos projectar o ritmo, o espaço e a arquitectura numa infinidade de espelhos." Com ela, De Keersmaeker "gostava de explorar a infinidade de diferenças que jaz adormecida dentro do que é igual, o máximo dentro do mínimo: o que acontece quando uma mulher dança o material gerado por um homem, quando a aceleração roça a desaceleração, quando o muito distante se acerca do muito próximo."Obrigando o pessimismo de Kirsty Gunn a conviver com a música "clara, cristalina, cheia e optimista" de Reich ("Music for 18 Musicians", de 1976), a coreógrafa assume, uma vez mais, a atracção dos opostos, o gosto pelo trabalho dos extremos que, no seu caso, acabam por se encontrar sempre.O individual e o colectivoHandke é o principal responsável pela atmosfera de "I Said I". "Auto-acusação" questiona-se sobre os princípios que ordenam a vida em sociedade, as leis que moldam os indivíduos e que rotulam os comportamentos comunitários. Território do colectivo, "I Said I" leva a uma reflexão pessoal, a uma tensão entre o mundo interior e o exterior, sem verdades inquestionáveis e sem fundamentalismos."Drumming" é também um espaço de liberdade. Trocando a estrutura do texto pela da partitura homónima de Reich - uma das mais celebradas obras do minimalismo da década de 70 -, De Keersmaeker cria um espaço dominado pela precisão geométrica, pelo "caos" ordenado.A cada bailarino cabe uma espiral, um centro preciso. Com uma energia contagiante, os intérpretes trocam o toque por um olhar demorado, nunca distante.Partilhando o vocabulário De Keersmaeker, "Rain", "I Said I" e "Drumming" garantem a passagem para um universo em que a geometria reinventa o espaço, e o espaço reinventa o corpo.

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