Sartre revisitado

Sartre foi um espírito livre ou um militante totalitário? A efeméride dos 20 anos da morte do mais controverso filósofo e romancista francês - o único a recusar o Nobel da Literatura - impõe a questão. Mas tudo é eclipsado pela inesperada declaração de amor do seu coveiro dos anos 70, Bernard-Henri Lévy.

Vinte anos depois da sua morte, Jean-Paul Sartre é arrancado ao sepulcro do esquecimento e erigido como "homem-século" pelo seu coveiro dos anos 70, o envelhecido "novo-filósofo" Bernard-Henri Lévy. Num livro de 650 páginas, editado pela Grasset, "Le Siècle de Sartre", Lévy prosterna-se perante o teórico do existencialismo, o guru da intelectualidade francesa do pós-guerra, o romancista que recusou o Prémio Nobel da Literatura, o sedutor, o companheiro de Simone de Beauvoir, em suma, aquele a quem chama o "homem-século" e pelo qual confessa ter alimentado uma secreta admiração durante anos a fio. Só os espíritos malignos seriam incapazes de perceber que foi certamente uma coincidência. Se a longa e hesitante maturação deste acto de vassalagem coincidiu premeditadamente com a efeméride dos 20 anos da morte de Sartre sugere um Bernard-Henri Lévy cuja aura mediática tem conhecido um implacável declínio. "O que é um grande 'intelectual'? Donde lhe vem este infindável ascendente? Do talento ou da ambição de Sartre", escreve Bernard-Henri Lévy: "Do seu apetite. Da sua curiosidade insaciável. O único a tentar todos os domínios e a mostrar-se excelente neles todos. Filosofia. A política, também. Literatura. Jornalismo. Crítica literária. Reportagem. Teatro, letras de canções, conferências, emissões de rádio, cinema..."Um intelectual tão ecléctico é, para Bernard-Henri Lévy, o mestre do pensamento do século mais desgarrado da História da humanidade. Mas não qualquer um dos Sartre. É que, de forma maniqueísta, Bernard-Henri Lévy considera que houve "dois Sartre", merecendo um deles ser salvo dos horrores que não denunciou. Sartre "é uma ambição" - a de ser ao mesmo tempo Stendhal e Spinoza, diz o ensaísta. Mas antes de ser, antes de influenciar, Sartre procurou os seus próprios mestres de pensamento. Ora, as recensões da imprensa francesa, confiadas a filósofos, são unânimes: as páginas sobre as influências do jovem filósofo - Bergson, Husserl, Heidegger, mas também Gide - são as melhores do "Século de Sartre". Dificuldade de Lévy em compreender o outro Sartre, o companheiro acrítico do estalinismo, o porta-estandarte dos maoístas, mas dificuldade curiosamente condensada num curto capítulo com um título longo - "Porque é que, apesar de tudo, se tem razão em estar errado com Sartre do que ter razão com Camus". Quase meio século depois, a quem interessa a velha polémica Sartre-Camus-Aron? O objectivo do livro de Lévy não é claro, de resto. Não é uma biografia, não é um ensaio, não é um romance, não é uma tese. É uma tentativa de ligar cada aspecto da vida de Sartre a cada sobressalto do século. Lévy, que é também o autor da "Barbárie com Rosto Humano", que em 1977 tocava a finados pelo pensamento da extrema-esquerda francês cujo mestre incontestado era, até então, Sartre, cai mais uma vez no seu defeito principal, particularmente evidente no "Elogio dos Intelectuais" (1987): o narcisismo. É por essa razão que, desde as primeiras linhas do calhamaço, todo ele escrito num estilo ligeiro, evocador por vezes da simplicidade snob de Duras, se insinua, inevitavelmente, uma dúvida, que, de resto, todas as recensões - à excepção do "sartriano" "Le Nouvel Observateur" - frisam em primeiro lugar: tratar-se-á, neste livro, de manifestar uma imensa admiração por Sartre ou de confessar um fascínio mal disfarçado pela glória que Sartre conheceu em vida? Quando Bernard-Henri Lévy pasma perante a "glória intelectual absoluta" de um Sartre já idoso, "lê-se" antes de mais a nostalgia da estatura que não terá sido nunca a do "novo filósofo" Bernard-Henri Lévy, mesmo se, também ele, "matou" a figura tutelar da intelectualidade das duas décadas do após-guerra em França: "É mais do que uma aura, é uma apoteose. É mais do que uma predilecção, é um frenesim no acto da coroação. O seu nome é uma bandeira. As suas conferências dão em motins. De cada vez são safanões, são cadeiras partidas, serviços de ordem desfeitos, começos de escaramuças, desmaios, gritos de histeria - as pessoas vão ouvir o pequeno homem com um olho maroto e a voz fanhosa dizer que o existencialismo é, afinal, um humanismo, tal como iriam ao Olympia ouvir Harry Belafonte ou Frank Sinatra."Motins, gritos histéricos, desmaios, Sinatra... Como Lévy se desvenda, com estas linhas, no seu sequioso desejo de ser aclamado como um intelectual popular - incompreendido, é claro, de tão complexamente inteligente, não é verdade? - mas adulado ao ponto do desfalecimento físico... Como se compreende melhor, a posteriori, o que havia de ânsia devoradora de glória no espectáculo alucinante de um Bernard-Henri Lévy, há uns anos atrás, no palco da Mutualité - a mais célebre casa de conferências de Paris - a gritar, num frenesim obsceno de músculos flácidos: "Bombas! Bombas! Bombas!", em plena campanha mediática, forçosamente mediática (senão que interesse teria...) a favor da Bósnia martirizada. Compreende-se assim melhor que, ao cabo de 650 páginas de escrita ligeira como a espuma do melhor champanhe, não se saiba o que resta de Sartre hoje em dia: se as suas teses têm ou não alguma actualidade, se o autor de "As Palavras" ou de "O Ser e o Nada", é ainda lisível. Ou se houve, ou não, impostura intelectual.

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