Quem tem medo de "Rosetta"?

Pedro Almodovar, Takeshi Kitano ou David Lynch? Esses serão considerados favoritos no jogo do adivinha que é o passatempo inevitável à beira do anúncio do palmarés da 52ª edição de Cannes. Há sempre "outros". Por exemplo, "Rosetta", de Luc e Jean-Pierre Dardenne, o perturbante e brutal filme escolhido para encerrar a competição.

Pedro Almodovar? A revista norte-americana Variety, denunciando aquilo que chamou a tendência "viver pelo autor, morrer pelo autor" que dominará Cannes - ou seja, segundo a revista, filmes que dirão alguma coisa aos seus realizadores mas não dizem nada aos espectadores -, considera "Todo Sobre Mi Madre" o único filme da competição que será verdadeiramente popular junto do público (se calhar menos nos Estados Unidos, também acrescenta, por causa das legendas). Para além desse barómetro da indústria americana, as opiniões são unânimes: Almodovar juntou crítica e público, e se lhe for atribuído hoje a Palma de Ouro o Festival de Cannes ficará associado a um sucesso comercial, o que, notam os cínicos, não acontece muitas vezes.Takeshi Kitano ou David Lynch? Eis dois autores que fizeram dois filmes considerados "atípicos". Ao primeiro, ninguém já lhe poderá diminuir o feito de ter passado de nome de culto a cineasta no patamar dos grandes, "Fogo de Artifício" atraiu gente que nunca tinha visto antes um filme do realizador/actor/cómico/escritor japonês, mas provavelmente alguns preferiam que "O Verão de Kikujiro" não fosse uma comédia. Kitano, nesta sua passagem por Cannes, teve de responder a muitas perguntas que denotavam algumas saudades da violência dos seus filmes sobre "yakusa". Mas ele insiste que tem direito a fazer as experiências que quiser (esta, além do mais, é magnífica), que faz os filmes a pensar no espectador e no crítico entusiasmado e conhecedor da sua obra, ou seja, ele próprio, e lá sossegou alguns fãs dizendo que o seu próximo trabalho vai ser rodado em Los Angeles, produzido por Jeremy Thomas (o produtor de Bertolucci) e vai ser um policial."The Straight Story", de Lynch, pôs alguns fãs também em perda, a comentar nos corredores: "ninguém morre? não há orelhas cortadas? onde está a América paranóica"? Não, a América de Lynch agora é pastoral, e o filme "é sobre a fraternidade", explicou o realizador. E até concordou que podia ser visto como uma homenagem a John Ford. Senhor Lynch, alguém lhe perguntou, esteve em Cannes em 1990, com "Coração Selvagem" e foi o céu, porque o filme recebeu a Palma de Ouro; dois anos depois foi o inferno, com o acolhimento glacial a "Twin Peaks, Fire Walk with Me"; agora é o quê? O purgatório?O filme tem os seus defensores, alguns deles foram mesmo emotivamente abalados por esta história - verídica - de um homem de 73 anos, fisicamente debilitado, que atravessou vários estados norte-americanos num pequeno e lento tractor (700 quilómetros percorridos a uma velocidade de sete quilómetros por hora) para visitar o irmão que não via há dez anos. Não é que o filme "seja lento", como alguns notaram. Os filmes de Lynch são sempre lentos e é essa lentidão que os preenche de ressonâncias bizarras e medonhas. Só que em "The Straight Story" a forma magistral como o cineasta movimenta a câmara e filma em "scope" se é um gesto caloroso e cúmplice em relação à sua personagem (interpretada por um actor de rosto espantoso, Richard Farnsworth), melhor seria, então, que tivesse feito um documentário sobre esse americano tranquilo - ou então sobre o actor, que deve ter muitas histórias para contar, já que começou no cinema como "duplo" nos "Dez Mandamentos" de Cecil B. de Mille e trabalhou com John Ford, Howard Hawks e Sam Peckimpah. Lynch mostra o "seu" cinema neste filme mas não tem o "seu" argumento - da autoria de Mary Sweeney, a sua companheira e também a montadora do filme. É um brilhante peixe fora de água ainda a reluzir. As últimas obras do cineasta têm sido fracassos, ele já só consegue filmar com a ajuda de dinheiros europeus, e - será esse o purgatório depois do céu e do inferno - é muito pouco convicto a enviar postais amorosos e cósmicos à paisagem americana. Por muito que se goste de John Ford...Entre os que são considerados favoritos e o fim da 52ª edição do festival, passaram ainda "Limbo", de John Sayles, e "8 1/2 Women", de Peter Greenaway. O primeiro continua a mostrar que o culto que lhe dedicam é excessivo. Esta sua primeira passagem na competição de Cannes, com uma história de recomposição familiar e de traumas pessoais numa ilha do Alaska, mostra mais uma vez que o trabalho sobre as personagens e sobre o argumento não são mais-valia para o cinema de Sayles ter fôlego cinematográfico. Pior é o caso de Greenaway, num filme que ele diz ser uma homenagem a "Oito e Meio" de Fellini, e que é um filme anacrónico (parece Greenaway a filmar antes de ser Greenaway), uma comédia falhada e uma obra cabotina, não se conseguindo descrutinar a invenção e o labor obsessivo que pelo menos distinguiam outras obras do realizador.Mas devem os favoritos ter medo de "Rosetta", o filme dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne que foi um soco no estômago no último dia do festival? Já tinha sido assim, com um filme da dupla belga, "A Promessa", na secção Quinzena dos Realizadores, em 1996. E é verdade também que a expectativa, nos últimos dias, era excitada com os avisos "cuidado, que vem aí 'Rosetta'". Luc e Jean-Pierre Dardenne mostraram o filme mais perturbante do concurso.Não tem uma história. Segue, antes, uma personagem, e a grande afirmação tenaz do filme é que "contar uma história" sobre Rosetta, uma rapariga que procura emprego, é negar-lhe a sua existência. Rosetta existe, e de forma brutal, a câmara e a actriz (uma estreante, Emilie Dequenne, absolutamente insondável e letal) não permitem que seja de outro modo. Ela é uma guerrilheira, procura trabalho para ser igual aos outros, para ter uma vida normal. Esta obsessão, a luta pela sobrevivência e para não se ser excluído, se cola a câmara ao rosto de Rosetta recusa a identificação com a personagem. Rosetta é um animal e moralmente pode ser um monstro, porque até denuncia para conseguir um emprego e tentar contornar o "kafkiano" cerco que se aperta à sua volta - os Dardenne filmam uma desempregada à procura de emprego como se ela fosse uma toxicodependente condenada à perda da sua dignidade. Haverá militância no trabalho dos irmãos Dardenne, que começaram a sua associação cinematográfica fazendo documentários de pendor social e político. Mas Rosetta, a personagem, é qualquer coisa que não se explica, e o filme deixa-nos tão sozinhos perante uma existência também sem caução que a primeira forma de solidariedade que não se consegue reprimir é cinematográfica.

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