Política poética

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The White Body © Cie Ea Sola

Do Vietname chegou a Portugal uma peça curiosa que, através do corpo, revitaliza uma referência filosófica num tempo e lugar muito diferentes da sua origem: o Discurso da Servidão Voluntária (1548), do francês La Boétie. Um texto rebelde, proclamador de que a tirania existe somente enquanto houver sujeição e, acusador da educação, que manda seguir sem questionar, contra a independência natural do ser humano.

Expondo-o em cena e revisitando-o à luz do mundo global actual, onde ainda há ditaduras vivas, a coreógrafa acentua o tom incitador do texto, dizendo: "Levantem-se! Sejam livres!" E pergunta o que se entende hoje por liberdade. Para Ea Sola, é um sinal de modernidade (concorrente com o poder de compra e inovação) e um valor claramente inscrito no corpo branco, europeu. Regressada ao Vietname após longa emigração, a coreógrafa imagina uma acção política radical: colonizar com a liberdade.

Tão forte como o texto - parcialmente recitado ou projectado - é a presença de uma grande cortina de plástico que turva a vista sobre a maior parte do espectáculo, qual filtro que distorce a realidade. Uma iluminação muito eficaz transforma este elemento de peso e, por efeito, a acção que ele oculta e enclausura, ou suporta e enquadra, com função mais ornamental.

Atrás do plástico, três vultos incorporam lentamente figuras de trabalho, de cansaço, acossadas, implorantes e silenciosas. As caras quando lançadas contra a cortina dão individualidade a corpos anónimos e disformes. Agindo em autonomia ou co-relacionados, os bailarinos também transitam por papéis de poder com posturas erectas e autoritárias. A meio da peça e à frente da cortina, surgem manequins e estrelas pop ou outros indícios de uma juventude encantada pela sociedade de consumo.

The White Body é uma experiência coreográfica que condensa significados; com movimentos robotizados, acelerações frenéticas, curvas sensuais e gestos simbólicos, o corpo transporta informação que parece genuinamente vivida pelos jovens intérpretes, bem concentrados e expressivos. As formas, sonoridades e cores ampliam a dimensão emocional e possibilidades de leitura da mensagem que, por seu lado, gerou uma linguagem corporal própria. A peça é mais frágil no seu ritmo; a extensão e repetição às vezes dispensáveis podem desmobilizar a atenção do público nesta coreografia poética e subtil, onde o belo e o feio se confundem.

Em Lisboa o espectáculo apresentou-se no âmbito das Comemorações do Centenário da República e foi precedido por uma excelente conferência de Maria José Fazenda. Analisando o protesto de Ea Sola - que usa o discurso de La Boétie para denunciar desigualdades e ameaças à liberdade individual exercidas hoje em regimes autoritários - a antropóloga apontou a peça como exemplo do poder reflexivo da dança teatral, rebatendo a desvalorização que outros campos intelectuais e artísticos impõem à linguagem da dança. Neste quadro, The White Body foi uma celebração tocante da liberdade que se espera de uma República.

Paula Varanda

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