"Pai, o Zeca morreu esta noite"

Para os mais velhos, os que em 1974 eram adultos, o dia em que Zeca Afonso morreu é um dia preciso. Lembram-se onde estavam e como souberam da notícia. Hoje, já se conseguem rir

a Apesar de ter sido amigo de Zeca Afonso, de terem frequentado a mesma tertúlia em Coimbra, cidade que o músico dizia ser um "caramujo" ("para onde quer que se vá, vai-se sempre ter à torre da universidade"), Abílio Hernandez (acima dos 60), professor da universidade, hesitou muito antes de aceitar o convite da Almedina Estádio - a livraria foi das poucas, se não a única, a organizar em Coimbra uma homenagem a Zeca Afonso nos 20 anos da sua morte (23 de Fevereiro de 1987).E Hernandez hesitou porque "tinha receio que estivesse muito pouca gente, que estivessem só velhos, e que fosse uma romagem de saudade". Mas esteve muita gente na livraria de Coimbra, no sábado à noite. Jovens, de facto, apenas alguns.
Os jovens não ouvem Zeca Afonso? "É um cantautor muito conotado e é isso que faz com que não passe nas rádios. O Zeca é objectivamente censurado, apesar de hoje vivermos em liberdade", diz José Jorge Letria (56 anos), também amigo de Zeca Afonso. Mas o músico acredita que os jovens "já se libertaram desse estigma".
Para a geração que dominou a tertúlia de sábado, a geração que viveu o 25 de Abril já adulta, Zeca Afonso é uma das figuras artísticas mais importantes do século XX em Portugal. "Está para a música portuguesa como Jobim está para a brasileira", diz Rui Pato (61), músico que tocou com Zeca Afonso.
Sentados à mesa, a desfiar memórias, a maior parte das vezes humorísticas, estiveram outros músicos que acompanharam Zeca, como Carlos Correia (também acima dos 60), figuras da resistência que actuaram com ele, como Manuel Freire (65 anos) e José Jorge Letria, e antigos estudantes de Coimbra que também conheceram Zeca, como José Mesquita (mais de 70 anos) e Abílio Hernandez.
Carruagem 3, lugar 7
Boa disposição não faltou. Falou-se do amor de Zeca Afonso ao judo e de como "estatelava" colegas no chão. "O Zeca era uma pessoa muito divertida. Tinha muitas obsessões. Uma delas era o judo, já era um perigoso cinturão amarelo. Quando fomos a Londres, o Zeca fazia os ensaios de judo no corredor do hotel vitoriano. As outras obsessões eram a música e a luta contra a ditadura", contou Carlos Correia.
Rui Pato confidenciou à plateia como eram feitos os primeiros discos de Zeca Afonso: "Se eu vos disser, não acreditam. Vinha uma 4L com material do Porto. Levávamos uma carta dos senhorios para os caseiros analfabetos lerem, com autorização para gravar na quinta [a quinta do Mosteiro de S. Jorge de Milreu, actualmente propriedade da Universidade Vasco da Gama]. Estávamos em 1962 e, quando nos enganávamos, voltávamos ao princípio. Se passasse um carro, se se ouvisse uma galinha, voltava tudo ao início". Durante muito tempo viajou "de borla" nos comboios de Portugal. Recebia postais de Zeca Afonso a combinar a hora, o dia e o sítio do ensaio. "Trate de preparar os dedos", escrevia-lhe Zeca. Rui Pato levava sempre a viola, mesmo que não precisasse dela. "Punha-me na estação e vinha um senhor ter comigo e perguntava-me: "É o camarada Rui Pato? Carruagem 3, lugar 7." E lá ia eu." No meio de tudo isto, Rui Pato nem se apercebeu que estava a viver "um momento histórico da música portuguesa".
A plateia riu quase sempre. Só quando se ouviu Menina dos olhos tristes se fez silêncio. Quando se começaram a ouvir os acordes do último espectáculo de Zeca Afonso na Queima das Fitas de Coimbra, em 1968, a sala mergulhou em tristeza. A gravação foi disponibilizada por José Mesquita, que sublinhou a importância de Zeca Afonso no fado de Coimbra.
"O Zeca era um grande poeta, indiscutivelmente", defende Abílio Hernandez. "Era bom que se estudasse a poesia do Zeca, porque a sua lírica tem sido menosprezada, como se fosse apenas um veículo para transmitir um sentimento de resistência, que está na sua música. Mas o Zeca foi as duas coisas: músico e poeta."
Contou Manuel Freire que, um dia, quando vinha do Canadá, encontrou o escritor Mário Zambujal e o músico Paulo de Carvalho no avião e perguntou-lhes por Zeca Afonso. Zambujal lamentou: "Acho que não se safa." Manuel Freire tinha tido um acidente grave e, como a viagem fora atribulada e o avião desviado para Faro, mal pôde ligou à família para dizer que estava bem. Do outro lado, a filha mais velha respondeu apenas: "Pai, o Zeca morreu esta noite." Passados 20 anos, os amigos do músico acreditam que a "memória do Zeca" se vai projectar sempre "no futuro".

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