Os trabalhos e as paixões de Nuno Teotónio Pereira

Arquitecto foi premiado pela Igreja Católica. Itinerário de um apaixonado por Lisboa, que continua a ter um olhar crítico sobre o mundo, a arquitectura e os problemas da habitação

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Nuno Teotónio Pereira foi há dias distinguido com o Prémio Árvore da Vida/Padre Manuel Antunes NUNO FERREIRA SANTOS

Cinco dias depois de ter deixado de ver de um dos olhos, em Maio de 2009, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, hoje com 90 anos, acordou a sentir que a outra vista estava com sintomas semelhantes. Levantou-se, saiu de casa, no bairro de São Miguel, em Lisboa, e, como habitualmente, apanhou os transportes públicos atravessando a cidade para se dirigir ao ateliê, na Rua da Alegria. Ali, arrumou todas as suas coisas.

Antes de deixar o gabinete, o arquitecto telefonou para a mulher, explicando o que se passava e dizendo que tinha que voltar ao oftalmologista. Ela pediu-lhe que apanhasse um táxi e viesse depressa. Mas Teotónio Pereira fez de novo como todos os dias: apanhou os transportes públicos. Ao entrar em casa, disse: "Despedi-me de Lisboa." À hora de jantar, perdera completamente a visão.

É um apaixonado pela cidade. Viveu sempre na capital e é em Lisboa que estão alguns dos edifícios mais marcantes que projectou: o "Franjinhas", a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, os prédios de habitação das Águas Livres, o plano e edifícios do bairro do Restelo ou o prédio de habitação social dos Olivais Norte, que lhe deu o prémio Valmor 1968.

Foi também a partir de Lisboa que se empenhou em questões como a habitação social e as rendas controladas, na criação e dinamização do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR) e na actividade cívica e política de oposição à ditadura do Estado Novo.

Foi este percurso que o júri do Prémio Árvore da Vida/Padre Manuel Antunes, da Igreja Católica, quis reconhecer, ao atribuir-lhe o prémio deste ano - mais um a juntar aos vários que recebeu ao longo da vida. Uma distinção que o próprio sentiu, admite, como um "filho pródigo" que era de novo acolhido pela Igreja. "De certa maneira, foi isso que aconteceu. Não sou praticante já desde há bastantes anos, mas conservo muito da minha formação como cristão e católico. E prezo-a muito", diz Teotónio Pereira, em entrevista ao PÚBLICO.

O prémio foi ainda o reconhecimento por uma vida preenchida com a profissão, a militância católica e a intervenção política. "Apreciei muito que me tivessem dado o prémio, até por ter o nome de um grande amigo, o padre Manuel Antunes" - o jesuíta que leccionava na Faculdade de Letras de Lisboa e cujo pensamento e saber multidisciplinar seduziu gerações de estudantes (as suas obras completas estão a acabar de ser publicadas pela Fundação Calouste Gulbenkian).

Arquitectura comprometida

Desde o início da sua vida profissional, Teotónio Pereira "anunciava um novo paradigma de arquitectura comprometida com os direitos fundamentais da pessoa humana e com a transformação estética e política do mundo", dizia a acta do júri. Na cerimónia de entrega do prémio, no dia 11 de Julho, o bispo que preside à Comissão Episcopal da Cultura, D. Pio Alves, reconheceu essa "dívida de gratidão" da Igreja Católica para com o arquitecto que foi o primeiro presidente do MRAR. Neste movimento, participaram artistas como Cargaleiro, Eduardo Nery, José Escada e Jorge Vieira, e arquitectos como Nuno Portas, Luís Cunha, Diogo Lino Pimentel ou Formosinho Sanches.

A habitação e a cidade, primeiras paixões, ainda hoje o mobilizam, mesmo retirado da vida profissional. Cita o caso recente da Amadora, onde "a câmara está a deitar abaixo bairros de barracas onde vivem pessoas pobres e imigrantes, sem garantir a muitos dos seus habitantes o direito à habitação".

Essa preocupação vem desde muito cedo: em 1948, fez uma intervenção, juntamente com o colega Manuel Costa Martins, sobre habitação económica e reajustamento social, no 1.º Congresso Nacional de Arquitectura. "É do conhecimento geral a premente necessidade de habitações - um dos mais tremendos problemas da época. Uma enorme parte da população está alojada em condições que não satisfazem as mais fundamentais exigências psicofisiológicas do homem", afirmaram os jovens profissionais.

Quatro anos antes, já ambos tinham traduzido a Carta de Atenas, manifesto de Le Corbusier, fundador do Movimento Moderno, que propunha soluções para os problemas da cidade tradicional. Mas o envolvimento de Teotónio Pereira nas questões da habitação consubstanciou-se ainda na missão de que foi consultor na Federação das Caixas de Previdência, entre 1948 e 1972.

Habitações decentes

Em 1993, numa das suas crónicas no PÚBLICO (reunidas no livro Tempos, Lugares, Pessoas), defendia que "só com uma forte intervenção da administração central será possível proporcionar habitações decentes às populações". E recordava que o problema da habitação não se resumia à questão das barracas.

Hoje, ainda tem um olhar crítico sobre o tema: "Há muitos aspectos que são ignorados na luta política e na acção do Governo". E, sobre o caso da Amadora, diz: "É um recuo muito grande em relação a situações anteriores. A câmara diz que quem não está inscrito no PER [Programa Especial de Realojamento] não tem direito a ser realojado em novos bairros sociais. O PER já tem 20 anos e as pessoas que não foram recenseadas nessa altura não têm direito a ser realojadas em novos bairros sociais. É uma situação dramática e caricata."

O problema da habitação, diz ainda, passa pelos milhares de casas vazias que há no país: "São um espólio muito importante, que deveria ser aproveitado para realojar as famílias que estão a viver em péssimas condições." E, acrescenta, "a principal acção para solucionar o problema da habitação devia ser dirigida para aproveitar esses milhares de casas desabitadas". O Governo deveria mesmo investir num "plano que abrangesse todas as situações de carência de habitação", com "a colaboração das câmaras".

Nem só de habitação se fazem as preocupações de Teotónio Pereira. Na cerimónia de entrega do prémio, o arquitecto disse que não nos devemos conformar com a actual situação do país. Agora, explica, "preocupam-me as desigualdades enormes que existem. Deviam ser atenuadas aplicando as medidas de austeridade não só à maior parte da população, mas principalmente às pessoas que auferem grandes rendimentos."

Teotónio Pereira diz que lhe faz "muita impressão não haver redução dos rendimentos dos que têm mais dinheiro". A competência de redistribuição que compete aos governos, acrescenta, "devia ser desenvolvida nesse sentido". Estes factos levam-no a confessar-se desiludido com aspectos desta democracia: "É uma democracia política, mas não é uma democracia no sentido mais lato, de maneira a proporcionar condições de vida satisfatórias à maior parte da população." Mas também o preocupa a situação em que vivem tantos colegas de profissão: "Há casos de desemprego dramáticos. É uma situação que atinge outras profissões, infelizmente os arquitectos não são as únicas vítimas desta crise. Mas são dramáticas as situações em que quase todos estão a viver. Sobretudo os jovens, que não têm trabalho."

Sobre a arquitectura, diz que ela deve respeitar aquilo que já um arquitecto do Império Romano dizia. "Que ela tinha que assentar em três pilares, de forma equilibrada: a funcionalidade, a resistência ou solidez e a beleza. A arquitectura tem que se adequar às necessidades das pessoas que habitam as casas ou dos empregados que trabalham numa firma ou dos operários de uma fábrica." Por isso, acha que a obra que melhor reflecte essa sua preocupação é o edifício "Franjinhas", em Lisboa, declarado imóvel de interesse municipal. "Preocupei-me muito com as pessoas que passavam ali a maior parte do dia sentadas às secretárias, a trabalhar." De tal modo que "as secretárias mais perto da janela recebem a mesma luz das que estão ao fundo da sala, por causa dos efeitos do tecto e das faixas de betão penduradas nas janelas."

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