O HOMEM A QUEM ROUBARAM AS OLIVEIRAS DA INFÂNCIA

"Vamos! Vamos!", diz, poucos minutos após a primeira paragem.Foi ele quem chamou a atenção para a curva do rio. Um carro desviara-se da estrada principal. Preparamo-nos para esclarecer as razões da inusitada incursão de um casal entre uma e a outra estreita margens, mas o escritor Nobel mostra-se impaciente. Tem pressa de chegar à Azinhaga, a terra onde nasceu.
O que vê, porém, à medida que avança o carro - no qual viajam, além dele próprio, José Saramago, a mulher, Pilar, o fotógrafo espanhol Jose Manuel Navia e este jornalista do PÚBLICO - deixa-o inconformado.
- Aqui havia oliveiras - começa por constatar. - Roubaram-me as minhas oliveiras! - protesta, por várias vezes, à medida que desfila aos nossos olhos a interminável, monótona paisagem, nua de árvores.
- Olhem para estes campos [de milho transgénico]. Aceitaram as indemnizações que a CEE ofereceu e agora temos isto, tudo igual...
Iniciámos a peregrinação a pé pela aldeia. Quase nenhuma emoção perante o lugar em que outrora se ergueu a casa natal. Está guardada para mais à frente, no que resta da casa que foi dos avós maternos.
Pilar acha que deve comprar o espaço. Não parece ser essa a sua ideia
Desfia recordações para o fotógrafo espanhol, que pretende ilustrar, com imagens desta peregrinação, o texto que a revista de domingo do El Pais lhe vai dedicar, na série com grandes escritores mundiais deste Verão de 2001.
Os locais gostam de lembrar que a aldeia, administrativamente situada no concelho da Golegã, tem foral desde D. Sancho II e que é a mesma a que, antes da fundação de Portugal, chamavam Santa Maria do Almonda. Características edificações na rua principal constituem a prova de que ali se ergueram, a partir do século XII, palácios, solares, igrejas e capelas, o mesmo será dizer, "ali se foi construindo um país".
A Azinhaga foi, nos célebres concursos salazaristas de António Ferro, a "aldeia mais portuguesa do Ribatejo". O contacto com os toiros, nas fainas do campo, fez da raça de maiorais desta terra "de lezírias e espargais", pelo saber, os mais famosos campinos das terras da Borda d"Água, diz uma nota do rancho folclórico "Os Campinos da Azinhaga", lida durante a breve paragem para almoço.
Não foi para estas divagações, contudo, que José Saramago se deslocou de Lisboa. Sobe, e nós com ele, ao campanário da igreja. Dá um beijo a uma prima, encontrada na rua. Ruma ao Paul do Boquilobo, para onde gostava de ir, em longas viagens de dias, e para onde - torna-se claro nos gestos, nas recordações, na insistência em ir até onde o carro pode chegar - não se importava nada de partir agora mesmo em nova aventura. Boquilobo, oferecida, depois da crise de 1385 por D. João I a João das Regras com a legenda "Melhor lhe dera se melhor houvera".
Passados cinco anos, estas recordações tomam a forma de livro - As Pequenas Memórias (Editorial Caminho) - que aqui mesmo vai ser lançado, em cerimónia de ressonância internacional, na próxima quinta-feira, 16, num regresso simbólico aos lugares da infância e adolescência do escritor, na aldeia ribatejana.
Casas, oliveiras, arbustos, dois rios, um pântano. Que importa que deles só restem os dois últimos? Que tenha desaparecido sob um monte de escombros a casa que foi a pobríssima morada dos avós maternos de quem os leitores já sabem os nomes, desde o discurso de aceitação do Nobel da literatura, em 1998 (Josefa e Jerónimo se chamam, este último, analfabeto, "o mais sábio dos homens" que Saramago conheceu)? Que importam os estragos do prémio da CEE sobre os olivais desaparecidos?
A cada instante, José levantará as paredes da casa branca, plantará as oliveiras, fechará o postigo da porta e a cancela do quintal e dirá: "Avó, vou por aí dar uma volta", e ouvi-la-á responder: "Vai, vai", meterá "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge", pegará num pau para qualquer mau encontro canino e partirá para uma das quatro partes em que o universo se dividia então para a criança "melancólica", para o adolescente "contemplativo e não raro triste" que era ele: o rio, "os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado", a mata de tramagueiras, faias, freixos e chopos que ladeia o Tejo, um pouco à frente da confluência com o Almonda, ou o Paul do Boquilobo, "um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso".
Tudo nítido setenta anos depois - paisagem, gentes, afectos -, numa revisitação através do "poder reconstrutor da memória". E da literatura. Adelino Gomes

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