Michel Chandeigne, o lusista acidental que aterrou em Lisboa há trinta anos

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"No início dos anos 80, Lisboa era qualquer coisa..." Ricardo Castelo/Nfacto

De como um jovem biólogo francês que coleccionava fósseis e se entretinha com prensas manuais se tornou um especialista da poesia portuguesa e uma autoridade na figura de Fernão de Magalhães

Tradutor, antologiador e editor de poetas portugueses, investigador da cartografia quinhentista, autoridade na viagem de Fernão de Magalhães, autor de várias obras sobre Lisboa, proprietário em Paris de uma livraria e de uma editora especializadas em temas portugueses e brasileiros, Michel Chandeigne é um dos mais notáveis lusistas franceses da actualidade. Considera-se "um lisboeta", mantém casa alugada em Alfama e garante que os moradores e comerciantes da zona o conhecem melhor do que os seus vizinhos parisienses.

Este interesse pelas coisas portuguesas iniciou-se há 30 anos, quando uma decisão burocrática o colocou em Lisboa. Estava-se em 1982, Chandeigne tinha vinte e poucos anos e era um jovem biólogo. Gostava de coleccionar fósseis e, para se entreter, passava os fins-de-semana de volta de uma velha prensa que um tipógrafo o ensinara a usar. "Era um hobby, como outros jogam ténis ou golfe", explica.

Como dispunha de uma licenciatura, estava abrangido por uma simpática lei francesa da época que lhe dava a opção de substituir o tempo de tropa por dois anos de trabalho numa instituição francesa no estrangeiro. Foi colocado como professor de Biologia no liceu Charles Lepierre, em Lisboa, onde ficaria até 1984. "Ignorava tudo sobre o país, nem sabia que existia uma língua portuguesa muito diferente do espanhol. Quando recebi a nomeação, fui ao mapa ver onde ficava Lisboa." Mas quando aterrou, e a bolinha do mapa se lhe revelou em todo o seu tridimensional esplendor, foi amor à primeira vista. Como é típico dos enamorados, ainda hoje não sabe explicar o que a cidade tinha de tão sedutoramente único. "No início dos anos 80, Lisboa era qualquer coisa... era o clima, a língua, a vida da cidade, as mulheres, tudo". Para aprender o idioma, achou que era boa ideia tentar traduzir poetas portugueses, o que tinha a dupla vantagem de o obrigar a exercitar também a língua natal. "Fui a uma livraria à procura de livros com poemas curtinhos". Este pragamático critério levou-o a escolher Miguel Torga e Eugénio de Andrade. Quando se deu por satisfeito com as traduções, enviou-as aos autores. Responderam ambos e, coincidência extraordinária, marcaram-lhe encontro para o mesmo dia, um em Coimbra e outro no Porto. "Como a carta do Eugénio era mais calorosa, decidi ir ao Porto...".

E quando volta a casa, no Verão de 1983, imprime, na sua tipografia artesanal, Ving-sept Poèmes d"Eugénio de Andrade, um livrinho com 200 exemplares de tiragem. Joana Varela, então no Instituto do Livro, compra-lhe 30 exemplares, um dos quais vem a ser oferecido ao recém-falecido pessoano Robert Bréchon, que convida Chandeigne para integrar a equipa que estava a traduzir Pessoa para as edições Christian Bourgois. Um grupo que incluía também Patrick Quiller, igualmente professor no Charles Lepierre, que se tornará cúmplice de Chandeigne na tradução de muitos poetas portugueses.

Da poesia à história

Terminada a comissão de serviço no liceu francês de Lisboa, regressa a França, mas já mantém as ligações a Portugal. Nos anos seguinte publica oito livros de Eugénio na La Différence, de Joaquim Vital, e traduz outros poetas, de Pessoa a Sophia, Ramos Rosa ou Nuno Júdice. No total, traduziu 40 livros de poesia portuguesa. Um trabalho que culmina em 2003 com a edição, na Gallimard, da sua Anthologie da la Poésie Portugaise: 1935-2000, escolha da lírica portuguesa pós-Pessoa. "Saint Simon dizia a Luís XIV: quando nomeais um ministro, fazeis cem descontentes e um ingrato", conta Chandeigne. "Eu fiz cem descontentes (os que não estão lá) e 35 ingratos (os que não gostam do poeta ao lado ou acham que estão pouco representados)".

Natural da Borgonha, Chandeigne muda-se para Paris e abre, em 1986, a Librairie Portugaise & Brésilienne. Seis anos depois cria a editora Chandeigne, também ela especializada em temas portugueses. Funcionavam ambas no mesmo local, mas o surpreendente sucesso da livraria levou o seu proprietário a mudá-la, já este ano, para um lugar mais central e com o dobro do espaço. Responsável pela publicação de muitos escritores portugueses e brasileiros, as edições Chandeigne têm ainda uma colecção dedicada a viagens históricas, a Magellan, que é a menina dos olhos do editor. Entre os 48 títulos que já publicou, conta-se uma monumental edição da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães (Le Voyage de Magellan(1519-1522) - La relation d"Antonio Pigafetta & autres témoignanges), que reúne todas as fontes directas e que, garante Chandeigne, corrige dezenas de erros que circulavam persistentemente. "Todas as edições estão agora obsoletas, mesmo as dos Estados Unidos, e quaisquer futuras edições terão de se basear nesta". Para se ter uma ideia das novidades que trouxe ao estudo da viagem de Magalhães, refira-se que se pensava, até agora, que apenas 18 tripulantes tinham sobrevivido, quando sobreviveram 90, todos eles identificados nesta obra. O livro reuniu uma vasta equipa, incluindo os historiadores Luís Filipe Thomaz e José Manuel Garcia, e ainda o próprio Chandeigne, que se assina Xavier de Castro, o pseudómino que usa para os seus trabalhos em torno da cartografia quinhentista.

Numa vida em que pequenos acasos tendem a ter consequências duradouras, a explicação para Chandeigne se ter tornado uma autoridade mundial na cartografia da expansão marítima do século XVI é quase desconcertante: "Quando comecei a traduzir o Pessoa e cheguei à Mensagem, percebi que tinha de ir estudar a história dos Descobrimentos...".

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