E no fim, Lisboa fez de Anne Teresa de Keersmaeker uma coreógrafa feliz

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Em cima a coreógrafa durante a apresentação, em Janeiro, da bienal Artista na Cidade. Em baixo, à direita, Fase (1982) e, à esquerda, Cesena (2011), a sua primeira e a sua última peça RUI GAUDÊNCIO

Chegou ao fim a primeira bienal Artista na Cidade. A coreógrafa belga regressou a casa feliz. E nós? O que ficou para além da experiência artística? O que ganhou a cidade?

A última imagem de Anne Teresa de Keersmaeker em Lisboa é um mergulho da coreógrafa belga na multidão que sábado à noite enchia a Calçada da Bica. Eram quase quatro da manhã, quando a festa que encerrou o programa Artista na Cidade, que desde Fevereiro acolheu a coreógrafa em Lisboa, terminou.

Antes disso De Keersmaeker e os seus bailarinos ofereceram à cidade um concerto improvisado e, por momentos, o que em muitas cabeças parecia apenas imaginação finalmente concretizou-se. Um fado dançado por Anne Teresa, cantado pela voz de Gisela João, a juntar a outras composições e intérpretes como as que trouxe ao CCB, à Culturgest, ao Maria Matos e São Luiz, à Fundaçao Gulbenkian, ao Teatro Camões e ao Museu do Chiado.

Foram 12 espectáculos, da primeira de todas as coreografias, Fase (1982, no CCB), à última, Cesena (2011, CCB e Teatro Camões/Alkantara Festival), e entre eles a remontagem de três peças para a Companhia Nacional de Bailado (4330 espectadores, 980 deles em duas apresentações no Porto com um custo de 279 mil euros), num regresso da coreógrafa à companhia que encontrou em 1998 com The Lisbon Piece, ainda hoje objecto estranho e mítico.

E ainda: um espectáculo ao ar livre, mais um vídeo, um concerto, um workshop para crianças e um livro. E, por extensão, presenças no Porto, com a CNB, e em Guimarães 2012, que co-produziu Cesena. "Mais do que poderia esperar. Mais do que poderia imaginar", dizia-nos a coreógrafa. "Que oportunidade rara."

Sucesso artístico e sucesso de públicos, assegura Catarina Vaz Pinto, vereadora da Cultura em Lisboa, para quem a bienal veio mostrar que, "mesmo em tempos de crise", é possível cativar instituições públicas e privadas, administração central e local num projecto, desde que ele valha a pena. "Só com uma proposta ousada é que conseguimos chamar as pessoas. E isto é válido também para os teatros e outras instituições", diz a vereadora, de quem a coreógrafa se despediu com a promessa de voltar.

Interpelar a cidade

A ideia foi de Luísa Taveira, directora da CNB, coincidindo com a intenção de António Mega Ferreira, então no CCB, para acolher a artista (o CCB apresentou as quatro primeiras peças e Cesena, de 2011, num total de 4154 espectadores e um orçamento executado de 174 mil euros). Mas o que fica de uma programação assim? José Luís Ferreira, director do São Luiz - teatro que mobilizou 1400 pessoas entre a peça Drumming, o concerto Cesena nos Jerónimos, o lançamento do livro A Chroreographer"s Score e a iniciativa Pequenos Artistas na Cidade -, fala de óbvios ganhos artísticos para o público e para os criadores portugueses, bem como o exemplo de boas práticas que a Rosas deixou: "Ela mostrou-nos o que pode uma companhia de reportório quando tem uma casa estável, com financiamento regular ao longo dos anos. O que pode artisticamente, mas também socialmente."

Para o director do São Luiz, esta programação dedicada a Keersmaeker provou que a "actividade do artista pode interpelar a cidade como um todo" e criar dinâmicas de circulação de públicos. A bienal custou ao teatro municipal pouco mais de 50 mil euros e deixou raízes. "Quando se tem uma programação desta extensão e qualidade, cria-se uma narrativa. E sempre que uma cidade acompanha o trabalho de um artista, esse trabalho passa a acompanhar a respiração da cidade."

De Keersmaeker já era presença frequente desde 1987, quando apresentou nos Encontros Acarte a peça que deu nome à sua companhia, Rosas Danst Rosas. Mas, contadas todas as vezes que esteve em Lisboa, 2012 "será sempre especial". Palavra de coreógrafa. No total, e sem poder contar com quem até domingo podia ter entrado livremente no Museu do Chiado para ver Violin Phase, de Thierry De Mey, nem com os que dançaram Bal Moderne, em Setembro, nas ruas de Lisboa, passaram pela bienal 12.294 espectadores (número apurado pelo PÚBLICO e ao qual se deverão juntar os 320 que foram à Fábrica Asa, em Guimarães, e os 980 que foram ao TNSJ ver a CNB).

Anne Teresa gostava de saber o que terão pensado os espectadores que a acompanharam. "O que significa ver estes espectáculos? Só posso imaginar que tenha sido inspirador. Mas é tão difícil..." É difícil explicar, tanto quanto é difícil ver este número elevado de espectáculos do mesmo artista num só período de tempo.

Vaz Pinto, Ferreira e Mark Deputter, director do Maria Matos, defendem que, sem a colaboração que a bienal exigiu, seria impossível a qualquer uma das salas sonhar com uma programação desta amplitude. "Lisboa tem uma capacidade de colaboração incrível", diz Deputter, que recebeu The Song, que teve as suas últimas apresentações em Lisboa. Vista agora, entende-se como antecâmara de En Attendant (que esteve na Culturgest/Alkantara Festival, para 899 espectadores e um custo de 63 mil euros) e Cesena. O Maria Matos investiu na bienal 36 mil euros (para The Song teve 494 espectadores, a companhia gastou cerca de dez mil, pagando as viagens do elenco e o transporte do cenário). Diz Deputter: "Não há aqui uma rivalidade entre teatros que faz com que o artista que se apresenta num palco não possa apresentar-se noutro num curto espaço de tempo. É claro que em Lisboa também somos concorrentes, mas cada teatro tem o seu público."

Foi a colaboração planeada a ano e meio da realização do programa que o tornou possível sem custos adicionais, explica Catarina Vaz Pinto. "A bienal vinha prevista no orçamento dos teatros, não se gastou mais dinheiro por isso. E ela permitiu que Lisboa ganhasse escala no circuito internacional dos grandes artistas."

Se é verdade que há um público para cada sala, também é verdade que houve uma legião de fiéis que acompanhou todo o programa. "As pessoas sentiram que ter a Anne Teresa em Lisboa, com a evolução do seu trabalho", de Fase ao impressionante Cesena, foi "uma dádiva extraordinária", acrescenta Deputter.

Para De Keersmaeker a experiência foi de uma intensidade inaudita: "Ver as diferenças, perceber as correcções que faço com a música e perceber o que mudou ao longo dos anos foi uma aprendizagem." No primeiro de dois dias de Drumming, sentou-se na plateia do São Luiz para tomar notas que passaria para os bailarinos. Já a tínhamos visto a redescobrir movimentos quando dava indicações aos bailarinos da CNB. "Cada peça tem a sua história e foi um processo belíssimo poder reviver esses momentos. Voltar a perguntar-me como foi originado o movimento, de onde surgiu e que relação tinha com a música, por exemplo, foi importantíssimo."

Thomas Walgrave, director do Alkantara Festival, diz que o que caracteriza Anne Teresa é esta redefinição, "uma espécie de começar a ver, de deitar fora, de questionar o estatuto adquirido, de reinventar o que já fez". De Keersmaeker é, afinal, o que melhor definirá o que se entende por artista: "Alguém com uma visão sobre o mundo e o papel da arte no meio disso." É por isso que Deputter e Ferreira garantem que a escolha para inaugurar a bienal não podia ter sido mais acertada e que agora a fasquia para 2014 está elevada. Em cima da mesa, conta Walgrave, está uma lista de nomes, portugueses e estrangeiros, que terão de "operar no mundo da dança e do teatro", mas que podem ser também escritores ou músicos. Terão de chegar a uma conclusão "em breve".

Desta edição da bienal Artista na Cidade irão ainda ficar um livro, coordenado pelo dramaturgista Rui Catalão, e um filme-documentário, assinado pelo realizador e encenador Marco Martins, que no último ano seguiu os passos da coreógrafa. Ambos os objectos não têm data de lançamento.

Antes de partir para Bruxelas, Anne Teresa volta a ligar-nos. "Queria acrescentar uma coisa muito importante. Saio de Lisboa tão feliz. Muito feliz. Foi uma belíssima... ai, como dizer... até já Lisboa."

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