Críticas a "Século de Ouro" "revelam pulsões censórias"

A preceder a mesa-redonda "Antologias em Portugal no Século XX", que decorreu anteontem na Casa Museu Bissaya Barreto, em Coimbra, a pretexto da publicação de "Século de Ouro", Osvaldo Silvestre, co-organizador da obra (com Pedro Serra), leu um "depoimento contrafeito", no qual responde aos ataques que o livro vem sofrendo por não incluir os poetas Afonso Duarte, Miguel Torga e Manuel Alegre. Críticas que, afirma, são "reveladoras de pulsões censórias incontroláveis" e da "dificuldade desta cidade em conseguir ser mais do que uma mitologia póstuma e uma retórica inconscientemente paródica". A polémica, recorde-se, foi lançada esta semana pelo "DN", em cujas páginas Manuel Alegre declarava: "Ninguém é capaz de entender que numa antologia patrocinada por Coimbra 2003 não figurem Afonso Duarte, Torga e eu próprio". Na passada quarta-feira, o deputado Fausto Correia anunciava à imprensa que os parlamentares socialistas eleitos por Coimbra iriam tomar uma posição pública sobre a exclusão de Alegre e, anteontem, era a vez de Helena Roseta declarar que "Século de Ouro" não serve os interesses de Coimbra 2003".Sublinhando que a antologia que co-organizou com Pedro Serra "em nenhum ponto se arroga a pretensão de ser um juízo final sobre o 'corpus' poemático português do século transacto", Silvestre manifestou a convicção de que o que estará em causa nesta polémica é, afinal, que, para alguns, a expressão "Coimbra Capital Nacional da Cultura" cobre apenas "um território físico e imaginário delimitado pelas fronteiras do distrito", ao passo que, para outros, o projecto impõe à cidade um desígnio nacional. "Que a Capital da Cultura tenha optado, de forma serena mas firme, por esta segunda via, parece-me a melhor notícia provinda de Coimbra nos últimos tempos", afirmou Silvestre. Debate sem polémicaAo contrário do que seria de esperar, descontado este depoimento prévio, a polémica pouco contaminou o debate que anteontem reuniu, em Coimbra, os poetas e ensaístas Fernando Guimarães, Eugénio Lisboa e Luís Adriano Carlos, moderados pelo tradutor e ensaísta João Barrento. Este último abriu o debate com uma tentativa de sistematizar os vários tipos de antologias que têm vindo a debruçar-se sobre a produção poética portuguesa do século XX, desde as "representativas", entre as quais destacou a série das "Líricas Portuguesas" organizadas por Jorge de Sena e a "Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa", de E. M. de Melo e Castro e Maria Alberta Menéres, as "pessoais", como "Eloi Lelia Doura", de Herberto Helder, "Sião", co-organizada por Paulo da Costa Domingos, Al Berto e Rui Baião, ou a recente "Poetas Sem Qualidades", de Manuel de Freitas, e ainda as "epocais" e "temáticas". Um quadro onde admitiu não caber "Século de Ouro", que considerou "atípica". Fernando Guimarães historiou depois o próprio género antológico, desde os cancioneiros medievais até ao presente, mostrando como o objectivo central da preservação dos textos deu lugar, no século XIX, a um conceito de antologia que privilegiava já a qualificação dos autores e, portanto, apontava para a definição de um cânone. A propósito dos dissabores que os organizadores de "Século de Ouro" vêm sofrendo, Eugénio Lisboa reconfortou-os com o mais trágico exemplo dos editores que recusaram o livro "The White Goddess", de Robert Graves, antes de T. S. Eliot ter providenciado a sua publicação. Logo após as recusas, o primeiro morreu de ataque cardíaco e o segundo enforcou-se, tendo-se descoberto que o cadáver envergava, sob o vestuário masculino, um conjunto de soutien e calcinhas. O ensaísta inventariou também algumas exclusões especialmente escandalosas na história da literatura, como as propostas no livro "Fifty Works of English and American Literature We Could Do Whitout", onde Brigid Brophy, Michael Levey e Charles Osbone defendem que, entre as obras dispensáveis da literatura de língua inglesa, se contam "Hamlet", de Shakespeare, "A Letra Escarlate" de Hawthorne, os "Picwick Papers" de Dickens, as "Folhas de Erva" de Whitman, ou, entre muitos outros exemplos igualmente desconcertantes, "o Som e a Fúria" de Faulkner. A dificuldade do consenso críticoLuís Adriano Carlos, que centrou a sua intervenção nas Líricas Portuguesas de Sena - como exemplo de uma antologia cuja "ambição da totalidade" a colocaria nos antípodas de "Século de Ouro" -, ilustrou a dificuldade do consenso crítico evocando uma antologia que está a organizar e prefaciar a partir da escolha de 25 poetas, que escolheram 25 poemas da poesia portuguesa de sempre. Se fosse possível uma objectividade absoluta, notou Adriano Carlos, os poemas seleccionados deveriam ser 25, quando, na verdade, são mais de 400. A serenidade do debate não foi afectada nem mesmo quando a palavra passou para a assistência. "Então, portanto, a falta do Torga é normal?" foi a única pergunta que, timidamente, trouxe à conversa a polémica que se tem vindo a travar nos jornais. Eugénio Lisboa, assumindo-se como apreciador de Torga, explicou que, dada a regra da antologia, que limitava a três poemas a escolha de cada ensaísta, achava natural não o ter seleccionado. Já Adriano Carlos defendeu que a única verdadeira lacuna do livro era a ausência da "Ode Marítima de Pessoa"Lisboa defendeu ainda que o critério da ligação a Coimbra não fazia sentido e evocou, a título de ilustração, um episódio entre Faulkner e Hemingway. O primeiro afirmara estar muito acima do segundo em termos de audácia e ousadia de escrita. Hemingway não gostou e andou a pedir a generais que conhecera durante a Segunda Guerra para testemunharem da sua bravura no campo de batalha.

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